sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

380

DEIXANDO PRA TRÁS
16/02/17






Tomei o ônibus e me sentei de propósito, num dos bancos do 'bobo' - os quem ficam de costas pro motorista.

Tudo ia ficando pra trás, tudo o que eu deixava passar. Estava sem perceber, trabalhando o meu cérebro, vendo a face das coisas que não posso ver, indo de frente. 

Percebi, o quanto posso enjoar nessa situação, enquanto me desoriento e meu corpo chacoalha com o  balanço do ônibus, que transita pela via de asfalto todo irregular em remendos mal feitos.

Ruas e avenidas vão ficando pra trás, as de mão única, as de dois sentidos, os varais nas sacadas de casas antigas e mal cuidadas, em sublocação.  Não gosto muito do que vejo, mas essa é a minha cidade.

O calor é abrasador, não há ar condicionado, apenas uma abertura no teto, as janelas não dão conta de ventilar, e quando ventilam, deixam entrar um ar mais quente ainda.

Lembro-me dos bondes, das poucas vezes em que viajei neles com minha avó.  Íamos da Moóca até o bairro da Aclimação, visitar a prima Antônia, forçosamente tínhamos que passar pelo centro. Era uma viagem e tanto, mas compensava, o café da tarde da prima Antônia era sempre maravilhoso - sempre foi, com xícaras coloridas - eu me lembro, desde os tempos em que ela morava no Tatuapé e lá íamos fazer a nossa visita. Tive saudade do bonde, pelo menos não tinha janelas, era todo aberto.  Tive saudades também da prima Antônia, mais parecida com minha vó do que suas próprias irmãs - na voz e na aparência, no temperamento. Ambas tiveram a mesma doença.

Vi os estacionamentos lotados, as calçadas apinhadas de gente trombando umas com as outras e o quanto nosso povo é miscigenado.

Até os cachorros evitam o sol e se deitam à sombra.

Vi manequins nus nas vitrines das lojas, sendo vestidos por seus vendedores.  Vi a torre da mesquita.  Vi pessoas almoçando, em mesas de bares abertos, perdidas em seus pensamentos, preocupadas talvez com o que teriam que fazer logo mais à tarde e é muito provável, que não fizessem.

Eu estava quase chegando ao meu destino, embora tivesse a sensação de já estar voltando, pela forma como via o que ficava pra trás.  O movimento era de ida, mas assim de costas parecia que estava voltando, vendo um filme de trás pra frente ... eu acho.

Cheguei, desci e esqueci a sensação, depois de um café, tudo se aquieta.  Até que eu voltasse a me lembrar do que se passou, pra poder escrever a respeito.


Nenhum comentário:

Postar um comentário