segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

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TODAS AS CARAS 

Por mais que eu a conheça, sempre me surpreendo com ela.  Após décadas de estreita convivência, ela ainda é capaz de mostrar uma nova e desconhecida faceta, quando menos espero e quero.  Sem dúvida, é de muitas caras, mais instável do que todas as mulheres sob o efeito das quatro fases da lua.

Sinto como se ela, durante todo o tempo, alimentasse uma propaganda enganosa a seu respeito.  Quando julgo estar mirando a verdade, insiste em desatrelar uma ou outra máscara, e quantas tem!  Como se aos poucos, fosse retirando a maquiagem, os acessórios que disfarçam suas imperfeições, sua bela roupa; mostrando-se como é, e revelando-se aquilo, que eu não imaginava que fosse.

É com assombro, que muitas vezes, me deparo frente à sua crueza e secura, se mostrando nem um pouco misericordiosa, para com os meus sentimentos, apresentando-me fatos prontos, não opcionais e totalmente avessos à minha intenção.  Com sua postura impositiva, me obriga trilhar caminhos nunca esperados, apesar dos meus esforços em contrário.  Desconsidera meus planos e vontades, me arrasta por consequências danosas – as mesmas das quais, tanto desejei evitar.  E ao conquistar uma certa maturidade (tanto quanto me é permitido ter), encontro uma utilidade para ela  – de lançar luz sobre os fatos do passado!

Ela é mestra em me fazer inadequado, oferece oportunidades tardias, que teriam sido muito bem vindas em outras épocas. Apresenta novos amores, como flores de outono, quando não há tempo ou coragem para vivê-los.  Convida a dançar, quando não tenho pernas; dá nozes, quando já não tenho dentes.

Mesmo já tão calejado, sucumbo ao seu encantamento, para depois acordar subjugado por ela.  Por vezes, parece que usa de hipnose, para atingir seu intento, e acho que é de caso pensado que o faz, me leva ao engano e só então, profere a sua sentença: “É assim que vai ser!”   Constato que o 'arbítrio' não é tão 'livre' assim!

Eu não terei conhecido todas as suas caras, até que ela, totalmente nua, venha se deitar comigo em minha cama, pela última vez.  Até no meu último suspiro, ainda terá algo a me ensinar!



segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

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CORPO E SENTIMENTO 

Mas afinal, do que são feitas as nossas lembranças?   Poderíamos afirmar que são recordações fiéis do que se passou conosco?  É preciso se pensar a respeito!

Lembramos não só do que presenciamos, mas sobretudo, nos lembramos de como nos sentimos.  Portanto, nem tudo que nos re_passa na memória, é do jeito que foi, de fato.

Estivemos presentes de corpo e de sentimento, nos momentos que nos foram especiais, agradáveis ou nem tanto.  Para nós, aconteceu exatamente assim, como nos lembramos.  Dessa forma, as lembranças são tecidas de recordação e divagação do nosso imaginário, que nos faz construir uma realidade pessoal, que se agrega ao fato em si.

Quando as lembranças nos vêm à tona, vêm carregadas de informações completas, e isso se dá durante um longo tempo.  São imagens que saltam em cores, sons, movimento e cheiros.  À medida que o tempo passa, percebemos que as imagens que sobem à superfície, começam a se desfazer pelas bordas, como se estraga o papel das velhas e raras fotos – suas beiradas ficam gastas.  É assim que as lembranças se apagam, aos poucos da memória.  As cenas das quais queremos nos lembrar, começam a ficar embaçadas e sem definição, do exterior em direção ao meio. Esse é o indício de que estão perdendo a nitidez.

Terminam, quase que desaparecendo por completo, se transformando num grande borrão.  Fica evidente a dúvida, de como as coisas aconteceram na realidade, porque a memória já não é mais a mesma; embora a emoção que as acompanhou, seja ainda bem viva.  Ah! a emoção, ela nunca mente, nem nos deixa enganar.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

1636



QUE NOITE!

 Acho que eu dormi na gaveta!  Espero a minha poeira passar

pelo buraco da ampulheta e na parte de baixo chegar.

Não posso ter pressa ..., mas que noite foi essa?!

Quem sabe o que ora desce, já seja o que se intumesce

e refaz-me como gente, devolvendo-me à forma, urgente!


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

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UM ATO DE FÉ

Num exercício de fé, eu expiro, porque sei que a natureza proverá.  Eu libero o ar usado, porque confio, que na sequência, meus pulmões receberão o oxigênio necessário.  O mesmo acontece com a nossa vida, é inútil tentar segurarmos nas mãos o que nunca se deixará reter.  Da mesma forma, é improvável agarrarmos algo, com as mãos cheias; tanto quanto é impossível, aspirarmos novos ares, com pulmões repletos de ar velho.



terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

 1634




BRAVURA E ÍMPETO

Criei coragem, e foi nessa madrugada insone.  Queimei as fotos, as cartas, os bilhetes, ou quase isso; porque na verdade, foram imagens e mensagens trocadas, que deletei, num ato de bravura e ímpeto.  Várias vezes, tentei em vão e repensando, eu desistia. 

Com a desistência, eu tinha sempre um lugar para voltar, intacto e real (ou quase)!  Agora, não tenho mais as palavras para serem relidas, nem as fotos, para reavivar a memória; muito menos a chance de ressentir as lembranças, pela revisitação visual.

Quando (e se) eu quiser voltar, não tenho mais para onde.  Assim, reabrindo as portas imaginárias das várias salas de recordações, uma a uma, me será preciso garimpar dentre os itens lá atulhados.   Espero que dessa forma, perdido o acesso rápido, seja mais fácil resistir, em dar uma espiadinha, um regresso, mesmo que por pouco tempo; porque o esforço será muito maior.   Só poderei contar com a minha vaga lembrança, que restou da antiga e fresca memória de antes. 

sábado, 3 de fevereiro de 2024

1633




CONFESSO

Espalho pranto seco e silencioso

pelos dias, noites, ruas e vielas.

Arrasto no espírito, certas sequelas

já que meu corpo, tão voluntarioso

insiste em te procurar e saber

por onde andas, como estás?

Para que me vejas, bem atrás(?)

ou de só, o mesmo caminho tanger(!)

um olhar, contigo cruzar(?)

receber um aceno, um sorriso!

Nessa hora, eu simulo um improviso

como se te encontrasse, por um acaso

como um simples transeunte!

Então, minha alegria eu extravaso!

Declaro, veementemente

que nenhum crime cometi

além de girar ao teu redor

e querer ser merecedor!

Sou um satélite em torno de ti

sempre quieto e obediente

visível ou na obscuridade

presente ou transparente

sonhando com a reciprocidade!