domingo, 31 de março de 2019

932


LEGADO

Em cada linha, uma confissão
em cada verso, um lamento
em cada nota, uma saudade
em cada traço, uma intenção.
O artista se serve do argumento
e de coragem, faz a tonalidade
em revelar ao mundo
seu desgosto profundo.

Em cada verso, também
canta a alegria, que o sustém.
Em cada linha, nota ou traço
e sem nenhum embaraço
o artista, também cria
por vez, usando de alegoria.

Então, não há mais segredo
já é fato escancarado.
Desfila todo o seu enredo.
À posteridade, dá seu legado!

31/03/19


648




É ASSIM 

Através dos teus olhos - é assim que me vês.
Tenhas cuidado, da maneira como me falas, com a tua boca, pois não são os meus olhos que te enxergam - eu te vejo e sinto com os meus ouvidos!


31/03/18


arte | evelina oliveira
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APENAS UM 

A ti confiei a chave do portão do meu jardim. Onde guardava os tesouros que já trazia comigo, antes de ti ... aos quais deveriam se juntar, os que trarias contigo.
Vieste brincar nele, com livre acesso.  A brisa primaveril beijou-te o rosto, enquanto corrias por entre os arbustos.  Qualquer frescor e  virtude havidos nessa estação, conheceste e provaste deles. Foram promessas em palavras doces e gestos delicados. Apenas revolveste a terra, fingindo semear.
Viveste nele, as folias de verão, de rostos afogueados e vestes encharcadas de cumplicidades nas reinações. Com suas explosões de ânimos alterados pelo calor. Nessa época vieram as grandes chuvas arrasadoras do solo,  depois dos grandes raios e trovões amedrontadores.
Assististe o descolorir da folhagem, ao cair de cada uma das folhas, desde a primeira até a última ... indicando que era hora de mudança de mais uma estação.  Foi nessa hora que pensei que não deveria ter mais nada a provar, que o jardim era nosso, e que estaríamos seguros dentro dele, por termos atingido a maturidade. Foi um ledo engano meu, descuidoso e desinformado ...  pois perdeste a alegria de nele permanecer, por estar sem cor, mas nem por isso fizeste algo para fazê-lo reviver.
Então o inverno chegou e não temos lenha pra jogar ao fogo, não é possível sobrevivermos às intempéries e ao rigor com que o frio irá nos supliciar.  Virão os ventos fortes e gélidos, águas escuras caídas de um céu escuro e triste. 
Eu olho o meu jardim, e vejo um único cravo semeado, lindo, perfumado -  perfeito – lutando pela sobrevivência, mal se mantendo ereto, envolto em arbustos secos e retorcidos, descoloridos pela sede, os mesmos que vimos crescer e não exterminamos.
É uma triste visão, do que um dia foi um recanto verdejante e promissor. Choro pelo cravo, pela sua importância, pela sua beleza e sobretudo choro por mim.
31/03/17
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ILHA

Estava eu, rodeada de mar!
Um mar muito salgado ...
aumentado pelas minhas lágrimas!
Mais parecia uma ilha!

Depois percebi
que não era ilha coisa nenhuma ...
Eu era  continente
... um ponto mais alto dele!

Mas afinal!
Pra que servem os barcos?

31/03/16


148



MEIA RIMA

Não  procures  por  uma  flor
... nem caule
... nem raiz!

Procures  por  um  'dessabor'
ou  tanto  faz ... um 'dissabor'
pelo resultado  de  uma  fraude
e  encontrarás  uma  cicatriz!
31/03/16
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BANHO DE MAR 

O sol deu um mergulho no oceano,
Dizemos que ele  “se pôs”!

Não o veremos por algumas horas ...

Amanhã ele sairá de lá,
às primeiras horas ...
um pouco molhado e salgado,
mas logo secará!

O vento sempre sopra
e o sol sobe tão alto ...
que ninguém suspeita
... que ele ... toda noite ...
toma um demorado banho de mar!
31/03/16
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UMA HORA 

Eu me deixei ficar ali, na chuva, no frio e na quase noite.  Afinal, eu estava lá, voluntariamente.  Por decurso do tempo e por escolha, tinha marcado um horário com o infortúnio.  Passei por tudo isso, sem sentir dó de mim - aceitação pura - sem me sentir o último dos seres, um 'tadinho'.


Me imaginei, como alguém que se torna insensível ao frio, à dor, ao desespero, à solidão.


Foram breves momentos, mas percebi que isso é possível e passível de se vivenciar, 

é não oferecer resistência à temperatura baixa e desobrigar o corpo à tremer, 
é saber que a dor em algum momento terá fim, só é preciso aguentar uma pontada por vez, 
é reconhecer que o desespero é fé pequena, 
é ter certeza de nunca estar só.

Uma hora, seu ônibus vem, você encontra o amigo, a dor vai embora, o dia clareia!


30/03/18


sábado, 30 de março de 2019

64



UM OLHAR SOBRE O COMPORTAMENTO HUMANO
A VISÃO E OS OLHOS

A amplitude da visão não se limita, ao que os olhos veem.  Enxergar é muito mais, do que simplesmente ver.

Ver é atributo dos olhos, enxergar no entanto, é conquista da alma, que passa a  captar as imagens, através dos olhos - de suas células feitas para tanto - transformando-as, em informações enviadas ao cérebro, onde devem ser interpretadas, segundo seu entendimento.

Os olhos contemplam, mas o significado das imagens vistas, não é dado por eles.  Em seus complexos mecanismos, são janelas abertas, que deixam entrar a luz, junto com os acontecimentos, captando a mensagem, que nem sempre é compreendida em sua totalidade

Das informações recebidas, podemos apenas vê-las e não fazerem o menor sentido, ou ainda, não entendermos o que se passou, não aceitando os fatos como eles são, impondo sobre eles a nossa limitação - julgando e expedindo um veredito apressado.

Quando apenas 'vemos' os fatos, é como se a comunicação estivesse interrompida.  Em algum percurso do caminho, ela se perde por atalhos e não faz, o que deveria fazer, o seu traçado completo, pulando uma fase importante.

Entre os olhos e o cérebro tem uma distância muito grande e que não é uma distância física. Os olhos são o ponto inicial e o cérebro, o destino. O caminho a ser percorrido, precisa ser devidamente pavimentado.  Refiro-me à rudeza das estradas, e por que não dizer, de uma extensa e fechada mata, a ser cortada, para que dê espaço, às alamedas do entendimento, e que estas, nos permitam uma visão imparcial e caridosa, sobre o que vemos.  As vias devem estar desimpedidas, para que a resposta chegue sem ruídos ou distorções.

Só através da pureza de intenções de nosso olhar, é que poderemos chegar à aceitação das imagens vistas, tal qual são.

Uma boa visão só é possível termos, quando nos permitirmos enxergar com os olhos do coração.  Antes de chegar ao cérebro - o decodificador - a mensagem, deve dar uma passada pelo órgão, que está  longe de ser uma simples bomba.  O coração tem finalidades ainda desconhecidas, dentre elas, a de ser o mediador em qualquer circunstância de vida, para qualquer ser que se diga humano, pois foi a primeira parte que se formou,  antes mesmo do aparecimento do cérebro, quando este, ainda era um embrião.

A visão não se circunscreve aos olhos do corpo, da mesma forma que a audição, não se reduz à capacidade de escuta dos ouvidos.  Saber juntar letras, é diferente de sabemos ler, interpretar o que se lê, é o que importa.





420  



RAFAELA, DE MADRI

Havia chegado apenas com minha carcaça. A mente estava em outro lugar, quem sabe na ‘nuvem’(?) ou em trânsito, junto com meus dados móveis!   Estava olhando as últimas notícias, das quais não podia prescindir – os conhecimentos e informações desnecessários, que até agora vivi sem e que não me fizeram a menor falta – mas hoje, não dispenso.  

Nem os barulhos, nem os movimentos me faziam acordar pro que acontecia à minha volta.  Foi preciso, um par daqueles tênis infantis passar por mim, atingindo minha visão periférica,  com as suas luzes ‘natalinas’ fora do natal, pra que eu me apercebesse de onde estava.  

Eu sabia que a minha mente chegaria em algum momento, e ela chegou. Deixei o celular de lado – a pequena tela nas minhas mãos – pra ficar de olho numa tela maior, um painel que chamava os números das senhas de atendimento.

Aguardava paciente e entediada, como tantas outras pessoas, passava de uma cadeira à outra, na expectativa de me chamarem - a mim ou à minha senha, numa espera que prometia ser longa.  No meu caso, mais longa que dos demais, porque se tratava de um 'encaixe’ - só possível se houvesse disponibilidade e boa vontade de todas as pessoas pelas quais eu passasse até o atendimento médico enfim acontecer.

Tinha deixado meu livro em casa, não pude ler; queria escrever, não achei uma caneta na bolsa, apenas papel, não pude escrever na hora - o que só agora consegui. Usei o celular até a bateria esgoelar.

Fiquei observando a arquitetura do prédio, olhei pras paredes, percebi uma coluna um pouco diferente, arredondada, talvez metálica, de textura também diferente e imaginei que pudesse ser uma construção pré-fabricada.  Pude reparar que as tubulações eram aparentes, o que reforçou ainda mais a minha tese de ser uma construção pré-fabricada.

Mas o tempo, só passou rápido mesmo, quando eu engatei uma conversa com uma senhora que estava ao meu lado.  Aproveitei uma rápida exclamação dela pra entabular nossa conversa.  De início, bem genérica, sobre os atendimentos e suas reclamações de abusos que cometem com os idosos. 

Com o tempo - e isso, nós tínhamos muito - a conversa foi se tornando mais pessoal e íntima. Ao final - o que conhecíamos uma da outra, era o suficiente pra que eu passasse a admirá-la como ser humano.


Mãe de três filhos, aos quais tinha criado sozinha, depois do abandono do marido. Tinha trabalhado de dia numa metalúrgica, à noite lavava roupa ‘pra fora’ e de fins de semana fazia faxina, em casas de família, pra ganhar um pouquinho mais.  Assim é que tinha conseguido educar aos três filhos, hoje adultos com seus próprios filhos e netos - seus netos e bisnetos.

Gosto de conversar com as pessoas que me permitem essa troca, de fatos e experiências.  Posso garantir que a nossa, foi grande.  Acredito que tenha sido boa pra ela também porque no final ela me disse ter tido prazer em conversar comigo, perguntou o meu nome, eu lhe disse, e eu perguntei : - "E o seu?" ... ao que ela respondeu: - “Rafaela ... é, meu nome veio lá de Madri, da minha abuela”.

A minha vez chegou, minha senha era 26, a dela 28, nos despedimos.  

Fui atendida, felizmente, havia como tratar com medicamentos,  os sinais e sintomas físicos – os efeitos do mal que me levou até lá – mas a causa ou as causas, permaneceriam sem remédio - porque ainda não inventaram um.

 30/03/17


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DESOCUPA

Desocupa meu guarda roupa

já que não moras mais no meu peito!

Não fui eu quem te expulsou!

...

Rasgastes os recados da geladeira

e escrevestes impropérios!

Cuspistes a tua verdade

com a mesma gana e

com a mesma boca que beijava!

...

Teu toque ... afasta!

Teu pretenso amor?

Um arremedo!

...

Meu amor? ... Seria?

Alguma sombra do que foi?

Eu procuro ... a sombra
... mas não a vejo!

Nem pequena!

...

Em mim ... só tristeza!

A única ... que ainda resiste!
Em morar no mesmo lugar!

30/03/16

sexta-feira, 29 de março de 2019

931



INUSITADA, NO MÍNIMO

Foi como me senti. Com o oceano dentro de mim, mais as suas estranhas criaturas desconhecidas.  Podia ouvir o barulho das suas águas, quando esgueiravam-se pelas minhas entranhas, desviando dos meus órgãos, aos quais nunca vi - conhecendo-os, dessa vez, os órgãos e as criaturas.  Águas doces, as identifiquei em meu sangue, eu também as carregava.

Sentia, as unhas crescerem debaixo da carne dos dedos, as asas despontarem por sobre os meus braços, tomando conta totalmente, dos meus antebraços, mãos, até que, aos olhá-los, enxergava somente penas, brilhando sob a luz do sol.

Meus dentes, se modificaram dentro de minha arcada dentária, os caninos cresceram além das proporções de um humano.  Os músculos tomaram contornos diferentes, mais aptos à caça e à fuga.  Eu podia correr velozmente, com minhas quatro pernas, ou melhor, patas, e às vezes, eu as tirava do chão, as quatro de uma vez, e sem tocá-lo, ficava suspenso no ar.  Quanto mais rápido eu corria, mais via a minha pele suar e virar uma pelagem grossa, de vários matizes, que se mesclavam na mesma criatura - eu.

Descobri em mim, uma capacidade de sons, que podiam sair da minha garganta, alternados em uivos, rugidos e até cantos. 

Sob o comando da mente, minhas pernas e pés, se transformavam em cauda longa, com escamas e nadadeiras, podiam me levar bem longe e bem rápido, a qualquer canto dos mares.  Meus pulmões tinham a mesma capacidade, em todos os lugares.

Conseguia identificar, cada um dos minerais formadores das rochas milenares, dentro de mim, em minúsculas partículas, mas ainda assim, eu os percebia.  Resquícios de quando fui pedra.

O efeito do sol sobre a pele humana, se assemelha ao da fotossíntese nos vegetais, das reações que nos causa, a nossa exposição à sua luz e calor. 

Foi uma viagem, feita pelos reinos da criação, sem estar em estado aletrado de consciência, apenas me deixando levar.  Não foi uma viagem que obedecesse à clareza linear dos fatos, foi algo bem fora de uma sequência inteligível.  Até agora não sei, houve momentos em que me pareceu um déjà vu, mas não posso afirmar nada, são apenas devaneios de uma mente ociosa e solta.


29/03/19

arte | christian schcloe

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ÁGUA E VINHO 

Da água que dormia na pedra, se fez vinho!

A transformação se deu, numa estranha alquimia, capaz de converter os sólidos, os líquidos e apurar as essências, todas que estejam no celeiro, aguardando o momento de serem transformadas.

Sou sangue, que também é água, na pedra do meu corpo, que me contém.

Na pedra repouso, sujeito às mesmas leis de renovação e transformação.  Idêntica a que se deu naquele dia, e se dá, em todos os outros, em todos os anos e tempos.

Ciclos de renovação forçada, forçosa, obedecendo ao expurgo dos enganos próprios de mim, um a um.  

Uma alquimia, por nós ainda não compreendida, apenas, supostamente observada, operante, nos átomos das nossas células, enquanto vertemos suores e lágrimas, na expiação das nossas dores.

Já não é mais água, e sim vinho.

Já não sou mais 'eu', mas uma outra versão de mim!

29/03/18
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RUA 27 DE MAIO

Ela morava na rua 27 de maio de um ano qualquer.  Vestia um casaco dois números abaixo do seu, sentia frio porque ele não fechava.  Calçava sapatos desconfortáveis, nem sabia porque!  Sua comida já não tinha gosto e a sua bebida vivia sem graça.

Tudo ao seu redor era sem cor, estava tudo desbotado, embora enxergasse bem e cuidasse de tudo muito bem!

Trazia uns pensamentos dos quais já tinha se cansado.  Eram sempre os mesmos, como aquelas músicas que não saem da nossa cabeça, mesmo não gostando delas.  Tudo igual, tudo rotina.

Um dia, ela andando pelo mesmo lugar, vestindo o mesmo casaco, com pés normalmente doídos e achando que tinha perdido o paladar ... ela sentou-se no mesmo banco, o de sempre, da mesma praça e percebeu que estivera andando e vivendo e comendo e amando no passado.  Sua casa já não era mais na rua 27 de maio, tinha enjoado dela.

Doou o casaco, jogou fora os sapatos porque estavam imprestáveis, passou numa loja que nem conhecia, e comprou tudo novo.  Num lugar novo, totalmente novo, que nunca tinha entrado, escolheu algo pra comer e beber, que nunca tinha provado antes - enfim  aceitou a sugestão do garçom.

Ela viu como era bom estar confortável, degustar com prazer novos sabores, escutar novas músicas.

Sem querer começou a dançar, sozinha sem vergonha da sua alegria. 

Conheceu outros lugares, de barriga cheia, satisfeita, cantarolando  -  foi pra casa escrever, mas não voltou mais à rua 27 de maio.
29/03/18



arte | greg spalenka

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DE VIÉS

De  soslaio ... esguelha
espiei  ...  nem  vi!
Oblíquo ... diagonal
foi  o  rumo  que  peguei!
Tangenciei!
Distanciei!
Fui  bem  longe!
pra  depois voltar ...
... tive  que voltar!


Pela  mesma  estrada
refazendo  o caminho
no  sentido  inverso!
Repassando  os  fatos
revivendo  tudo!
Escutando  de  novo
os  velhos  casos
pra  olhar  de  novo
com  um  novo  olhar!
29/03/16


arte | agnes cecile