domingo, 31 de maio de 2020

1167

IMAGEM E PRESENÇA
31/05/20



Depois que a tua imagem entrou pelos meus olhos, nunca mais saiu, fez-se dona.  Posso vê-la, através do vidro das janelas, movendo-se muito à vontade, como que a tomar posse de sua propriedade.

Desde então, sofro de delírios auditivos, onde a tua voz cariciosa sussurra palavras macias, rentes ao meu pescoço.  Toda vez, sinto uma corrente elétrica viajando pela minha coluna vertebral, que se irradia por todo o meu corpo, em sensações que alvoroçam pensamentos e sentimentos.  Fico a imaginar, e a desvendar, quais letras, tuas mãos desenhariam, na pele das minhas costas.

Persigo a simples lembrança tua, e a tua presença exerce sobre mim, a mesma força de atração, do astro sobre seu satélite.

Passei a viver para ver-te, ouvir-te e desejar-te.


arte | greg spalenka

domingo, 24 de maio de 2020

1166

LIMITES DE PEDRA
23/05/20





Os muros altos de uma fortaleza não evidenciam o quanto ela pode resistir, não são sinal de poder, mas sim de fraqueza. As barreiras físicas, sempre contém pontos vulneráveis e suscetíveis aos ataques.

Os portões sempre fechados; o fosso constantemente, enfestado de crocodilos; a ponte, o tempo todo suspensa - guardam, não mais que a pobreza.

Perdidos nos corredores escuros, estão os pensamentos, não menos sombrios, como almas penadas pela noite eterna.  Espólios de guerras, armas dependuradas nas paredes dos aposentos, crenças empoeiradas e rotas de tão velhas, estão dispostos pelos infinitos cômodos a se perderem pelas muitas alas.  São um culto à memória de suas antigas vitórias, mas que não servem de nada, para vencer as próximas batalhas.

Por mais que se acendam as inúmeras lareiras, por mais lenha que se queime, por mais que se atice o fogo, o frio permanecerá, dentro dos limites de pedra.

Os troféus que viraram amuletos, as fotografias que perderam a cor, as lembranças com gosto amargo, os baús abarrotados de tesouros oxidados - são a companhia desgostosa, de quem segue resistente, negando a entrada de luz e vida, no seu reduto.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

1165

AOS POUCOS E SEMPRE
21/05/20




Daquela vez, eu chorei, por aquela e por outras tantas, em que não pude.  Percebi o quanto era fundo o poço, que guardava todas as minhas águas, debaixo da superfície, tampadas, com material grosso e ornamentado.

Tantas vezes, me mantive nas suas bordas, de ouvidos colados no chão, ouvindo o borbulhar das águas, sem destravar a tampa, sem dar vazão a elas ou aliviar a pressão, quando se agitavam.

Naquela vez, chorei quase tudo, ou quanto pude, não na totalidade que queria.  Os olhos e o nariz ficaram congestionados, a pele ardia pelo teor de sal das lágrimas que escorriam.  Eu teria o coração esmagado dentro do peito ou os pulmões cheios, em pouco tempo, caso não voltasse a recolocar a tampa.


sábado, 16 de maio de 2020

1164

ENTRE OS CONTRAS E OS PRÓS
16/05/20




Se de fato, não há algoz
não haverá vítima!  
Desenrola-se um retrós
pela vez décima
ou uma vez acima
de forma não tão veloz.
E de um modo mais feroz
na ante penúltima.

Nós, desatando os nós
feitos por nossos avós?
Talvez, feitos por nós!

A causa se subestima
e estraga a obra-prima.
O corpo secreta a enzima
em cada vez, uma lágrima
cada vez, uma dor legitima.
De par com a ânsia atroz
vai dividir-se, logo após
entre os contras e os prós! 



1163

CANÇÕES DE ESPERANÇA
16/05/20



Só quem conheceu a fome, é capaz de ser grato à refeição simples, sobre mesa rústica.  Depois de horas escuras e intermináveis de dor aguda, é com alegria, que se acorda sem dor, pela manhã.

A lua se compadeceu de teu sofrer e cuidou, para que o sol viesse trazer-te a cura.  Os seus primeiros raios parecerão dardos do bem, perfurando a escuridão; e o ar, a cantar aos teus ouvidos - canções de esperança.  Sentirás seu calor sobre a pele, acariciando-a ternamente, enchendo tua vida de luz.  Serás grato à saúde e às bençãos de um novo dia, ao que dirás: "Nunca meu jardim esteve mais belo, as folhas mais viçosas e as flores mais perfumadas."


sábado, 9 de maio de 2020

1162

SOBRE SUJEIRA E ERROS
09/05/20






Não arreganhe as cortinas, se não estiver disposto a admitir, que talvez suas vidraças, não estejam bem limpas.  Se deparar com a transparência da verdade é melhor do que permanecer no embaço da ilusão, mas é preciso segurar-se nas bordas internas da janela, como sustentação, antes de abri-la. É imprescindível coragem pra aceitar a sujeira mostrada, depois, saber fazer a limpeza: de que espécie de sujeira se trata, qual ferramenta, material e forma de limpar, que devem ser usados.

Entre duas telas virtuais na minha cabeça, jogo constantemente o jogo dos erros.  O que 'é' e o que 'gostaria que fosse'.  As duas telas se alternam e a comparação é inevitável, acabo por identificar muito mais do que os 7 erros esperados.

A minha dificuldade de aceitar e limpar a sujeira, tem tudo a ver com o número de erros que encontro, nas telas da minha mente.



arte | anna silivonchik
    

sábado, 2 de maio de 2020

1161


NA SàCONSCIÊNCIA
02/05/20



Quem é que, sob o rigor do frio, não busque aconchego?
Que dentro do calor da batalha, não questione o motivo?
Quem, na iminência da perda, não rogue aos céus?
Que revoltado com a injustiça, não se ruborize?
Que ao perigo - ladrão do sangue do rosto e do resto corpo,
não tenha as pernas congeladas e imóveis?
Que ao cair da noite, não tema pelo novo dia?
Quem é seguro o bastante, de enfrentar um possível inimigo, 
sem um escudo à frente do peito, ou um punhal oculto na manga?
Quem é capaz de assistir, ao grito de dor de um irmão,
e este não lhe causar amargor na boca?

Somos feitos de vidro, quebrável em cacos afiados, ou de um outro material, que se parte em pontas rombudas, como agulhas mal aparadas e cegas, que custam a penetrar a carne e o pano.

Os cacos e as pontas ferem quem as têm, e quem as vê ferir.

Porque nem toda consciência é sã - melhor dizendo: tanto a consciência, como a sanidade, podem atingir vários graus - tantos ... que talvez seja possível: sentir o frio, suportar o calor, a perda, a injustiça, o perigo, o medo, a dor nossa e alheia ... e não se quebrar, e não se ferir, nem a si, nem a ninguém.