sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

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AMANHÃS

Eu vi o tempo passar, diante dos meus olhos, até eu confundir os dias e meses entre si, em sobreposição, debaixo do meu nariz.  A inicial empolgação e ansiedade pela proximidade de finais de semana, deu lugar ao temor, quando uns, começaram a se encostar aos outros, me deixando sem tempo de fazer o que precisava ser feito, nos outros dias da semana.

Pensei que os dias me pertenciam, na verdade, eram eles que me tinham sob controle, pela velocidade com que rodavam, numa ciranda frenética.  Nem sei quando comecei a dar conta disso, nem quando acordei para o fato, de estar cada vez mais perto do fim e mais distante do começo. 

Vendi muito ‘hojes’ para comprar ‘amanhãs’, barganhei para adquirir ‘pacotes’, que nem sempre me foram entregues como o ‘esperado’.  Ah ... quantas vezes, comi cru e deixei esfriar uma delícia macia!  Por coisas ‘futuras e incertas’, desprezei os ‘presentes’ que tinha em mãos, para tentar agarrar balões imaginários.

Hoje, respeito o meu próprio tempo, já não corro mais ao encontro do tempo, relaxo e deixo que ele me encontre, ao tempo dele, num encontro mais casual.  Já não tenho mais pressa, ando com pés firmes, sobre as calçadas irregulares e perigosas, com atenção onde piso, sem ignorar as belezas do meu entorno, é claro!

O tempo passou sobre mim, como um rolo compressor, como passa por cima de tudo, quebrou a postura enrijecida do ego.  Ele mostrou que as pequenas desilusões não foram resultado de escolhas mal feitas, nem da minha incapacidade de realizar vontades, mas por ter alimentado expectativas, exageradamente.

Fiz o que pude e o que deu, cheguei até onde consegui ir, e em todas as vezes que quis fazer ou ir além, ignorando meus limites, paguei o alto preço, de carregar excesso. O peso que carrego hoje, equivale ao peso do meu casco: de ossos ainda intactos, da carne um tanto gasta e da consciência, que não sinto pesar.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2022


1558



A TERRA E O SOPRO

Não nascemos da terra molhada, que obedecendo à geometria sagrada, formata a nossa imagem, seca e oca - da terra, apenas nos formamos.  Nascemos, de verdade, quando o Criador inspira em nossas narinas de barro, seu sopro divino, com o ar da vida, e então passamos a existir de fato, em essência, dentro da forma.  Assim seguiremos, durante toda uma existência, deixando que entre e saia, o ar primordial, alimento e conservante do barro; até que no último expirar nosso; devolvamos à terra, o barro já um tanto gasto e à atmosfera, o ar usado e desnecessário, depois disso.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

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A METADE DO CAMINHO

Não dizem que ‘o primeiro passo é meio caminho andado’?   De acordo com a aritmética mais elementar, esse dito não condiz com a realidade; mas se analisarmos o quanto ele é importante, a frase ganha sentido; porque ao darmos o primeiro passo, algo acontece na nossa determinação; tudo tem muito mais a ver com direcionamento e vontade, do que com distância ou tempo.

O movimento quebra a inércia e indica que uma escolha foi feita, de seguir adiante, em determinada direção; indica também outras tantas possibilidades, das quais nos afastamos por serem inviáveis.  Uma força propulsora toma conta da vontade e disposição de atingirmos um propósito, seja ele qual for.  Mesmo se, não soubermos exatamente, qual o destino final ou se não permanecer no lugar, seja o propósito inicial; damos a permissão à vida de nos impulsionar, porque às vezes, ela só espera de nós, um mínimo movimento, de vencermos a estagnação, de abrimos uma porta, há muito tempo fechada, para que ela possa fazer acontecer o que precisa fluir.



sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

 1556




ENTRE O SIM E O NÃO 

Já não sei, se és o oxigênio que me falta ou se o ar que me sufoca.  Espremo a estória, pra contar-te entre os vivos; mas às vezes te mato, ao rasgar as folhas escritas.  Tenho ganas de levar-te à minha casa; quando não, sinto o alívio de não ter que fazê-lo.  Fico preso entre o ‘possível sim’ e o ‘não improvável’.  Já nem sei o que digo, nem o que sinto.  Finjo não me importar, mas no fundo me mordo.  Concluo que ao final, oxido minhas células, por demais.

Coleciono pequenas esperanças, pra depois vê-las escorrer por dedos transparentes. Desliso sobre a linha que une os dois polos opostos, com a mesma naturalidade do pêndulo que marca o tempo, com movimentos repetidos e monótonos.  Danço uma dança de pouquíssimos passos, cansativos e parassimpáticos, ora em cima, ora em baixo, como se não houvesse controle.  Essa gangorra de emoções me consome e me mata, aos poucos.

Não me decido, se ‘’sim’ ou se ‘não’, fico a maior parte do tempo, no meio do caminho, tão distante de um quanto do outro – como se buscasse um equilíbrio que não existe.

E ao contrário do pêndulo, que desenha no espaço, uma curva côncava e alegre ... eu registro um zigue-zague louco - apenas um sobe e desce frenético; traço um rabisco grosso e nervoso, de um risco sobre outros - num vai e volta, gastando sapatos e consumindo energia, sem chegar a lugar algum.


arte | agnes cecile

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

 1555




NINHO SEM PASSARINHO


O ninho que esteve quentinho, agora está desocupado

deitou fora o passarinho, que se tornou emancipado.

Mas o ninho não está vazio ou frio, está quente de alegria!

Passarinho usou asas viçosas, para encarar o desafio.

Em seu voo eu experimento um novo sentimento

vejo o mundo, na carona de suas asas poderosas!


arte | ottokim


domingo, 11 de dezembro de 2022

 1554



 FANTASIA 

A vida não é cruel, ela é justa, numa justeza dolorida, porém honesta. Expectativas forjam uma ‘realidade paralela’, muito diferente da real situação. Porque a criamos e alimentamos com todas as forças, em vermos concretizada nossa vontade – e dentro da nossa visão limitada e tendenciosa, ela nos convence de que é 'verdadeira'.

Nos tornamos escravizados, pela criatura a que demos vida.  Sem condições de enxergar as distorções, incongruências e incompletudes da nossa criação, seguimos confiantes na versão que idealizamos.  E como seguir um caminho, significa renunciar outros; recusar-se a ver a realidade é entregar-se à impossibilidade de realizar o que tanto desejamos, porque estaremos nos distanciando, do que é imprescindível de ser considerado. 

Expectativas se ligam mais aos desejos – ao mundo da imaginação, do que à realidade real e concreta.  É fantasia confeccionada sob medida, por nós e para nós, na realização das nossas necessidades e anseios.  Ao escolhermos deixar de ver, o que muitas vezes, está ‘na  cara’, aceitamos nos deixar levar pelo quimérico, pela consequente e certa exposição à frustração - um caminho inverso ao que pretendemos.


arte | katie o'malley