domingo, 21 de abril de 2019

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O QUINTAL E O POSSANTE


O quintal de nossa infância acaba por se tornar pequeno, à medida que crescemos.  

A praça, que para nós era o mundo, com esconderijos e espaço para fugir do pega-pega, ou andar de bicicleta por exemplo, se transforma num pedaço circular, ou retangular de terra, incapaz de conter nossas curiosidades. 

Ela retoma seu formato físico, e a mágica que a encobria, deixa de existir, depois que desvendamos todos os seus mistérios.

Da minha infância, eu me lembro de muitas coisas.  A ideia que tinha dela, não era de pobreza, mas de algumas necessidades não atendidas, era isso que eu via. Tudo foi de muita simplicidade, porém o básico foi atendido.

A alimentação foi com verduras e frutas, leite, café, pão e manteiga, arroz e feijão, carne nem sempre ... mas quando tinha, era partilhada igualmente, aliás, como tudo o mais.

As roupas, eram passadas dos mais velhos aos mais novos, eu como mais velha, adorava quando uma prima de minha mãe já mulher feita e ganhando o seu dinheiro, se cansava de algumas peças do seu guarda-roupa e as dava para mim.  Assim eu tinha a chance de usar roupas mais femininas, mesmo sendo ainda uma adolescente, fato que naquela época, era normal, menina não usava roupa de mulher, nem se pintava, só no carnaval.

Na escola pública, usávamos uniforme, nunca nos faltou livros ou cadernos, nem material para trabalhos, o tempo para as tarefas era sagrado. O lanche era de casa, raramente comprado na cantina.

As brincadeiras eram muito legais, gostava de brincar de casinha, e brinquei muito. Não era muito boa com jogos do tipo queima, ou vôlei, me lembro que uma vez entortei meu dedo jogando na escola, ficou muito inchado, chorei de dor.

As doenças eram tratadas com chás e sucos naturais, lembro-me de que antes dos meus sete anos tive hepatite.  Fui curada apenas com repouso e um suco de salsa que minha avó fazia no seu possante liquidificador.  Digo possante, porque era barulhento como o motor de um carro ligado, mas suas pás não liquefaziam completamente os alimentos, então eu tomava aquele suco, com pedaços grandes de salsa nele, era horrível, mas funcionou.  

Lembro-me também da vitamina, feita com leite e mentruz, batida no mesmo possante.

Eu cresci no quintal de meus avós maternos.  Lembro também com muita saudade, de desenhos que eu assistia junto com meu avô, em que as figuras eram muito delicadas, em silhuetas preenchidas de preto, sobre o fundo branco.  Aquilo me encantava, tal era a sutileza de suas formas. 

Nunca mais pude revê-los, acredito que esse acervo tenha se perdido, em alguns incêndios ocorridos nas emissoras de tv que os transmitiam.

Hoje, nenhum desenho atual, é capaz de provocar em mim o mesmo efeito.

Não conheço ninguém que se lembre deles, mas posso garantir que são reais, que marcaram delicadamente minha infância, além do 'gasparzinho' de que também gostava de assistir.  


Tenho total certeza, de que fui uma criança feliz, de que minha meninice não poderia ter sido mais rica do que foi.

Apesar do que faltou - que sempre falta algo - eu saí a procura do que queria.


Ao exemplo dos mais velhos, da comida compartilhada, das roupas aproveitadas, da atenção recebida, do amor disfarçado de cuidados, eu cresci feliz e plena, achando que faltava algo, quando na verdade eu tinha tudo, tudo de que precisava.

21/04/18

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