terça-feira, 23 de abril de 2019

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UMA QUESTÃO DE AMOR E FÉ

Vou lhes contar uma história, uma parte dela, eu diria que é a primeira de todas, das que eu já contei e das que ainda contarei. 

Fui forjada em têmpera de fogo, desde cedo.  Me considero uma pessoa forte, mas mesmo os fortes possuem calcanhares expostos, olhos do coco, portas dos fundos e telhados de vidro.

Como dizia, muito cedo passei por um período difícil, eu não tive consciência dele, mas foi o que me contaram, eu acreditei, e  não tenho nenhuma razão para duvidar disso e nem as pessoas que viveram,  teriam para mentir.

Acredito que ainda no ventre de minha mãe, devia ter algo dificultando o meu nascimento, talvez o cordão umbilical estivesse envolto em meu pescoço, ou quem sabe tenha ficado tempo demais, sofrendo as contrações.  Quando nasci,  eu era tão escura, que perguntaram ao meu pai se havia algum antecedente negro na família -  logo eu que sempre fui ‘morena-morango’.  Não se deram conta de que eu estava roxa e não preta.

Fui considerada como prematura, embora tivesse completado os meses de gravidez.  Disseram aos meus pais que a minha moleira  - que normalmente nasce aberta para a passagem pelo canal vaginal, com a sobreposição dos ossos – tinha algo de anormal e que indicava ser uma portadora de ‘hidrocefalia’, que não sobreviveria e se sobrevivesse teria um crescimento anormal da cabeça em relação ao meu corpo.

Essas notícias levaram meus pais e familiares ao pranto e ao desespero, pois aguardavam ansiosamente pela primeira criança, dos dois lados da família.

Posso sentir o quanto fui amada desde o começo.

As coisas só se complicaram daí em diante.  Minha mãe saiu do hospital e eu fiquei, porque não tinha peso suficiente para ir para casa e tendo em vista o prognóstico dado, era melhor que eu lá permanecesse.  Minha mãe em casa, depressiva e eu só no hospital.

Foi um teste de sobrevivência, eu sobrevivi.  Apesar de todo dia alguém sempre levar o leite materno que minha mãe ordenhava, e que deveria ser dado a mim – mais tarde ficou-se sabendo que não, nem todo ele – eu perdia peso e a cada dia ficava mais certo o diagnóstico sobre minha deficiência.

Depois de um mês separada de minha mãe e da minha família, eu apresentava risco de morrer caso saísse do hospital e fosse para casa.  Mãe depressiva, pai e avós desesperados, por serem pessoas simples, não questionaram nada, aceitaram a situação e se tornaram reféns dela. Provavelmente, não podiam me ver, nem me pegar no colo, acariciar-me ou amamentar-me ao peito. 

Perplexos, não conseguiam entender o por quê de não apresentar melhoras, e o leite levado com regularidade não surtir efeito na minha recuperação.  Naquela época não havia ônibus, trem ou bonde que ligasse o bairro da Moóca, onde meus parentes viviam, ao bairro do Belém, onde ficava o hospital.  A caminhada era feita a pé, eles se revezavam, debaixo de sol e chuva, sob a expectativa cada vez menor de minha sobrevivência.

Conforme o que me contam, minha mãe me dava como perdida, que não me teria mais em seus braços, que o hospital nunca ia me devolver à ela. 

Tirando o drama, eu fiquei com a mensagem de que eu sou uma vencedora, que luto mesmo sem ter consciência de estar lutando, sou teimosa.  Venci a morte – se é que em algum momento ela foi iminente – agradeço aquelas poucas vezes em que fui alimentada, as quais possibilitaram que eu não morresse de fome e  vivesse.

Acredito que isso tivesse acontecido, não seria por falta de alimento material, mas sim pela falta de atenção, de toque e do amor declarado.

Como pessoas ingênuas que eram, minha família acreditou no que lhes foi dito ao meu respeito.  Ao final de um mês, depois  de me verem nessas condições precárias, 
minha vó materna assumiu a responsabilidade de me tirar de lá, assinou um termo onde isentava o hospital de toda responsabilidade, sobre algum mal que pudesse me acontecer em casa.

Foi assim, saí de lá, segundo contam e não duvido, esquelética, com feridas por fraldas mal trocadas e com marcas de esparadrapo nas bochechas murchas para segurar a chupeta e não chorar de fome.  Imagino o quanto devo ter chorado, pedindo por minha mãe, meu pai, pelo amor a que eu tinha direito.

Parece que o começo de minha vida conta-se em meses, um mês para quase morrer e  um mês fora dele - o bastante para que eu ficasse irreconhecível, diferente daquele bebê que deixou o hospital, que voltasse a mamar ao peito com sofreguidão, recuperasse meu peso e ficar gorducha.

Devo minha sobrevivência ao amor de meus pais e familiares, à fé que tiveram em Deus, à Nossa Senhora de Aparecida e sobretudo, em mim.

23/04/17

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