segunda-feira, 15 de abril de 2019

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DE UM MODO OU OUTRO


A água morna do chuveiro descia pelo meu corpo.  


Os meus olhos choravam sem a minha permissão, lavavam a máscara de cílios, que junto com  a água morna, escorriam pelo meu rosto, enquanto eu arrancava da boca, um resto de batom.

Eram as cebolas da minha história, que me faziam chorar, involuntariamente, como o fazem as cebolas, quando as cortamos.

Imaginava a minha vida, sendo contada por um tango, com alguns entremeios de solo de piano, de início mais alegrinhos, mas sempre evoluíam para os tons mais tristes.  Eram fragmentos num outro ritmo, mais esperançosos, intercalando-se às notas pesadas, tentando suavizá-las e depois, davam a vez ao tango inicial.

Eu juraria, ter ouvido no fundo, o lamento tímido de um saxofone, ajudando a dar mais veracidade ao sentimento.

Ali quieta e só, a água morna e eu, víamos o meu corpo ficar limpo, a alma lavada e a minha tristeza ir-se pelo ralo.

Tinha escolhido afogar as mágoas no chuveiro, em lugar de fazer em um copo cheio, mesmo porque, de um modo ou outro, são elas - as mágoas, que nos afogam e não o contrário.

Quieta e só, podia sentir dó de mim; e ninguém precisava saber: do que eu sentia; de quantas cebolas havia descascado, firme e forte; de quantos refrões esperançosos era composta a melodia; de quantas vezes havia retornado ao tango inicial.

Refrão - deve ser a parte mais importante da música, repetido várias vezes, reforça o que é dito pelo resto da melodia; no meu caso - não era, mas acabava sendo.
  
Na tentativa de discordar do tema, amenizar a dor e convencer a tristeza a ir embora, ele se repetia em intervalos certos ... e como não conseguia nenhuma das duas coisas: nem amenizar nada, nem convencer ninguém ... acabava por se render a elas - as validava e as autenticava como legítimas.

15/04/19



arte | alyssa monks

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