Carnaval: Uma experiência arquetípica
No início do século XX, a comemoração popular vinda da África e a festividade de origem francesa inspiradora dos corsos, fundiram-se em celebrações coletivas de cunho popular-tradicional. Os desfiles de rua pediam samba no pé ou alegria sobre as rodas no corso de automóveis. O carnaval era o momento em que durante quatro dias, todos tornavam-se iguais, fossem intelectuais, da classe média ou simplesmente o povo simples e humilde.
No início do séc.20, grupos de pessoas fantasiadas usando máscaras como parte da brincadeira, saíam às ruas para se divertir, dançar e cantar, nos chamados blocos e já o corso carnavalesco reproduzia as elegantes e sofisticadas Batailles des Fleurs que acontecia na França, em Nice.
Em meados dos anos 30, o desfile de blocos fazia um extenso percurso por vários bairros: Campos Elíseos, Av. Angélica, Av. Paulista, Av. Brigadeiro Luiz Antônio e Av. São João. O carnaval de rua passa a ser uma representação cultural ligada à vida operária e a partir de 1934, os cordões que tiveram origem em núcleos de operários, passam também a desfilar pela cidade promovidos pela prefeitura de São Paulo.
A partir dos anos 40, com a criação de bailes em clubes, os grupos formados pelas classes média e alta deixaram o espaço público, mas os blocos continuaram na rua, organizados agora sob um tema. Eram formados por moradores e pessoas dos arredores de um bairro, clubes desportivos ou grupos profissionais. Desfilavam anunciando um tema ou uma causa, tais como homens vestidos de mulheres, críticas políticas ou mesmo um acontecimento coletivo inesperado. Os cordões e blocos começaram a desaparecer e a surgir as agremiações que depois deram origem às escolas de samba, sob novas regras.
No Rio de Janeiro, havia uma relação estreita entre bondes cariocas utilizados pelos foliões que cantavam e se locomoviam pela cidade e a animação carnavalesca. As escolas de samba desfilaram até 1942 na Praça Onze, Av. R. Branco e depois de muitos anos ganharam um lugar especial para o desfile, o sambódromo, até os dias de hoje.
Na década de 50, os bailes em hotéis e teatros eram comuns. Homens e mulheres usavam fantasias que concorriam a prêmios de originalidade e outros. O tradicional desfile no Hotel Glória e o baile no Hotel Copacabana Palace, marcaram um tempo de glamour e de celebridades. Esta década foi marcada pelo início da grande popularidade do carnaval no Rio de Janeiro e multiplicaram-se as celebrações do evento em diversas partes do mundo, enchendo salões de animados foliões. O mais famoso deles acontecia em Nova Yorkno Star Light Room do hotel Waldorf Astoria.
O carnaval no Brasil é irreverente, criativo e popular. Muitos ligam esta festa a espíritos malignos, outros a relacionam à liberdade plena de expressão.
Dukheim (1996), sociólogo fala de representações e recreações coletivas como rituais através dos quais os homens saem do mundo real e se transportam ao mundo da imaginação, rico em possibilidades e liberdade. Para ele, a festa, mesmo que seja laica em suas origens, traz características de uma cerimônia religiosa, pois há a efervescência do delírio.
O carnaval surgiu séculos depois que a Igreja católica no ano de 604, com o papa Gregório I, determinou um período do ano para que os fiéis se dedicassem somente às questões espirituais, o período da quaresma, oficializado no calendário religioso em 1091, através do Papa Urbano II.
O primeiro dia deste tempo é a quarta-feira de cinzas, tendo nos quatro dias anteriores, o carnaval – momento dos prazeres mundanos e carnais – que marca o início da quaresma, período de abstinência e sacrifícios.
O carnaval teve sua força na simbologia cristã que mortificou o corpo com a idéia de reprimir e negar os desejos naturais. Convém lembrar que a expressão carne vale, em latim, significa supressão da carne.
Há em nossa psique realidades que se opõem em opostos irreconciliáveis e assim, o sagrado e o profano são dois pólos que se opõem e se complementam. O carnaval é o momento em que há a libertação dos padrões vividos e por vezes negligenciados no cotidiano.
Para Nietzsche o carnaval é uma festa ritualística em que foliões fantasiados e mascarados se transformam num outro, numa espécie de efeito catártico e regulador do equilíbrio, numa trégua e alívio às proibições e medos. Os rituais facilitam a comunicação entre o mundo externo e o mundo interno possibilitando a partir da vivência um mergulho profundo na emoção.
No Brasil, o carnaval se expressa de um jeito próprio em cada região, trazendo alegria, espontaneidade e diversão. Muitos estilos e um só povo, traduzindo as diferenças sociais em irreverência, criatividade e popularidade – é a liberdade de expressão, luso afro-ameríndia que tem em sua origem a influência de personagens da cultura portuguesa, tais como o Zé Pereira, O rei Momo e a herança rítmica do bumbo e do reco-reco.
Da tradição italiana, commedia dell’arte, podemos reconhecer a colombina, o pierrôt e o arlequim. Esta mistura de costumes e tradições faz parte desta grandiosa festa popular conhecida no mundo inteiro e que caracteriza o Brasil como o “País do Carnaval”.
As raízes remontam das mais variadas formas de celebrações profanas da antiguidade, passando por festivais pagãos e por orgias romanas. As saturnálias romanas podem ser consideradas a forma mitológica e ritual mais próxima do carnaval da modernidade, cujos traços arcaicos estão ligados ao ciclo anual de renovação e fertilidade.
Saturno era especialmente adorado quando chegavam os primeiros sopros do calor da primavera e era saudado com festas e um período de liberação das convenções sociais. Durante as saturnálias, os escravos tomavam os lugares dos senhores e saíam às ruas para comemorar a liberdade e a igualdade entre os homens, cantando e se divertindo em grande desordem.
Na Grécia, em meados dos anos600 a.c os gregos realizavam, através destas celebrações, seus cultos em agradecimento aos deuses pela fertilidade do solo e pela boa colheita.
O carnaval é a festa em que a desordem é permitida, num “virar pelo avesso” as convenções, desmistificando-as e expondo as contradições sociais. Neste evento a tragédia grega é transportada para os dias de hoje e o clássico renasce no popular reunindo significativos universos imaginários.
Diz Mílton Cunha, mestre em ciências da literatura:
“A partir da imaginação liberta-se o lirismo pessoal, o espírito de revolta e de regozijo. O desestruturado é possível, o fantástico não é demoníaco, apenas parte integrante da psique humana”.
No carnaval as leis são mínimas como se houvesse sido criado um espaço especial onde todas as diferenças pudessem se encontrar deixando de lado as convenções hierarquizadas e repressoras, numa liberdade permitida. Todos estão ali para brincar, isto é unir-se, suspendendo as fronteiras da individualidade. As fantasias carnavalescas criam um campo social de encontro.
Para Roberto da Matta, sociólogo, o tempo do carnaval é marcado pelo relacionamento entre Deus e os homens, tendo por isto um sentido universal e transcendente. É um tempo de licença e abuso onde categorias como pecado, a mortificação da carne, o sexo em seu abuso ou abstinência estão presentes, num dinamismo oposto ao convencional.
O mundo do carnaval para ele é o mundo da periferia do passado, das fronteiras com um foco ilícito, fora do sistema, “como se a sociedade abrisse suas partes internas, expondo seus porões”. Assim, podemos entendê-lo como um rito de passagem que cria uma realidade intermediária.
O Rio de Janeiro, capital do país desde 1763 era o destino de brasileiros e escravos, transformando a cidade numa espécie de síntese da cultura popular do Brasil, além de lá chegarem as novidades européias. Era natural então, que surgissem na cidade carioca, as primeiras manifestações brasileiras de música popular, influenciadas pelo carnaval europeu. Portugal contribuiu com o entrudo, brincadeira que depois foi proibida, na qual os foliões usavam bisnagas com líquidos, representando laranjas que eram jogadas, molhando-se uns aos outros. Outra folia do séc.XIX era o Zé Pereira, nome dado às pessoas que percorriam as ruas da cidade dando pancadas em enormes tambores. Nesta mesma época a classe média emergente e a aristocracia, divertiam-se nos bailes de máscara, como na Europa em meados de 1840.
Na primeira metade do século XIX, com a criação dos cordões, encontrou-se uma forma de brincarem grupo. Eracomo uma procissão na rua, nas quais o som das músicas parecia confundir o sagrado e o profano. Eram grupos de mascarados, velhos, palhaços, rei, rainha, que vinham conduzidos por um mestre com um apito.
As primeiras formas do samba foram geradas pela comunidade negra, responsável também pelos ranchos, alegorias e abre-alas. A partir daí surgiram os blocos carnavalescos e as agremiações que deram origem às escolas de samba. Todos os anos surgiram novos grupos carnavalescos e novos instrumentos de percussão e em 1928 foi fundada a primeira escola de samba, chamada “Deixa falar”.
Se os anos 50 foram marcados pelos grandes bailes e marchinhas carnavalescas, a década de 60 foi a afirmação das recentes escolas de samba.
As escolas de samba são laboratórios vivos dos encantos e contradições da sociedade, falam da alma brasileira à luz da desigualdade hoje também presente no carnaval: as minorias e os alternativos cuja beleza vem à tona, uma cultura marcada pela oralidade e o efêmero, mas fonte de uma lembrança que se torna memória e história.
Há um tratamento épico do tema escolhido para o desfile da escola, cuja dialética aborda o indivíduo, herói mítico ou nacional, em oposição a uma massa de pessoas comuns. A ordem das coisas fica deslocada e tudo passa a ser alusivo, simbólico e representativo.
Há um espaço especial para vários elementos no grupo. A divisão em alas permite organizar, representar o enredo de uma forma apropriada, possibilitando “contar a história”. A bateria cria um grupo compacto e uniforme, mas também é o que a escola tem de mais individual e lhe confere uma identidade. São muito importantes a porta bandeira e o mestre sala, casal que reverencia a escola e se veste como figuras reais da corte Luís XIX....
continua...
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