quarta-feira, 11 de junho de 2025

1703




UM DENOMINADOR COMUM


Até o mais ferrenho crente no diálogo, aquele que acredita no poder das palavras, de esclarecer e encurtar distâncias - até mesmo ele, será obrigado a admitir, em algum momento, a inutilidade delas.


Não que ele desacredite ou duvide do significado de cada uma, mas ele sabe, que para haver comunicação é primordial que as partes a desejem.


Não há denominador comum ou acordo ou entendimento, a que se possa chegar, quando há a negação da existência de desencontro, ainda quando a questão já se encontra cristalizada de um dos lados.


Frustrado, em primeiro lugar consigo mesmo, mas depois percebe que não é falha sua, e que por mais eloquente que seja, é impossível tocar, nem que seja de leve, quem não deseja ser tocado.  Alguém que nunca baixa a guarda, rechaça qualquer tentativa de aproximação, mantém-se categórica e hermeticamente fechado em sua razão.  Talvez tema, que uma vez aberta, nunca mais a consiga fechar.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

1135

CANTAR E CONTAR
26/02/20


Amélia morreu de inanição, depois de consumir-se a si própria,
numa autofagia. Enrolada e acocorada, foi-se, mortificando sua carne, a um canto, sem um pio, sem comida, sem agasalho,
sem teto, sem reclamar, roxa e ressequida.
Se achava graça de sua desgraça, não se sabe,
talvez tenha sido puro sadismo, de quem dava voz à melodia,
por sinal, uma voz bem desumana!
Mas acho que foi mesmo desamor,
dela, para com ela mesma, sem nada exigir,
ou levantar-se para seguir adiante ...
antes mesmo de ser um descaso,
da parte de quem dizia, que a amava.
Não, não a amava! A odiava!
Se amasse, a respeitaria como ser vivente,
como ser livre, que escolhe ficar, podendo ir.
Ela não seria retratada como uma prestadora de serviços,
cúmplice da preguiça de quem a descreve, dentro de uma inércia de causar nojo.
Ele lhe traria os melhores quitutes, flores,
lhe daria as mais lindas vestes, uma casa aconchegante,
faria dela uma mulher de verdade, mesmo(!)
e não um espectro com alguma serventia.
Que bom que ela tenha morrido, pois não era de verdade,
nem sequer era mulher, sua vida foi uma apologia aos maus tratos.
Quem a cantou, deveria se envergonhar, de não ter pensado
numa letra mais adequada ao romance que tentou contar,
se é que foi mesmo essa, a sua intenção!
arte | agnes cecile

1702





HIATO 2

Desgosto sobre desgosto - des_gosta; escuridão atrás de escuridão - des_lustra.  Inútil foi tentar reaver o brilho, muito menos soprar o fogo que mantinha o sentimento aceso.  Passou um vento forte, ao qual nenhuma chama resistiria acesa.

Criou-se um hiato, que não se detecta em nenhuma parte do corpo. Abriu-se um buraco, uma fenda na alma, por onde já escorreu toda a boa intenção, todo o tempo de espera, toda a graça e não há nenhuma ponte capaz de transpor essa distância - essa boca que a tudo engole.