segunda-feira, 26 de agosto de 2019

1047

VEZ E VOZ 
26/08/19




O pranto foi tanto, que a mágoa ficou encharcada.  Não teve como se manter à superfície, mesmo com sua natureza muito próxima dos líquidos, se tornou possuidora de uma densidade muito maior do que a deles, e sucumbiu.  Não foi preciso nenhuma arma, ou droga para fazê-lo, apenas a música certa, capaz de acordar o sonho adormecido e revolver o sentimento enterrado, ambos esquecidos, reivindicantes de vez e voz.

Acostuma-se ao sofrimento, mas até mesmo ele, um dia se cansa de sofrer.  Exausto, decide dar fim ao objeto do seu penar.  Ela - a mágoa, tinha sido uma péssima companhia: à mesa, tirando-lhe os gostos; à cama, apropriando-se do único cobertor e do seu sono; na vida, subtraindo-lhe o brilho e a graça. Resolveu matá-la, em seu meio próprio, por afogamento.  Era preciso livrar-se dela.  Se deixou chorar, porque as lágrimas, só não são vermelhas, mas têm o mesmo teor de sal do sangue.  Foi assim que a matou, chorou-a ao extremo, até que não tivesse mais lágrima ou sal para derramar, até que nela não coubesse, mais nada de sal, que ficasse bem chorada e cheia.

Depois de bem morta, certificou-se de que não o importunasse mais.  Amarrou uma pedra bem pesada em seus pés.  Queria arremessá-la dali mesmo, onde ele estava, da margem, como se fosse um troço inútil, que se joga fora, sem cerimônia e esforço algum; mas por ser agora muito pesada, poderia emergir a qualquer momento - caso a fundura não fosse suficiente.  Então, ele a transportou até um local longínquo e o mais profundo das águas escuras, densas e sujas.

Assim o fez, uma vez lá, no meio, bem distante e profundo, livrou-se dela, sem apego ou ressentimento.  Ela foi vista inerte, descendo verticalmente, em direção ao fundo das águas viscosas, precedida pela grande pedra.  Finalmente, foi juntar-se às águas iguais à sua consistência e origem - lugar ideal de conservarmos as más_águas, longe dos olhos, do coração e da própria lembrança.



Nenhum comentário:

Postar um comentário