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VEZ E VOZ
26/08/19
Acostuma-se ao sofrimento, mas até mesmo ele, um dia se cansa de sofrer. Exausto, decide dar fim ao objeto do seu penar. Ela - a mágoa, tinha sido uma péssima companhia: à mesa, tirando-lhe os gostos; à cama, apropriando-se do único cobertor e do seu sono; na vida, subtraindo-lhe o brilho e a graça. Resolveu matá-la, em seu meio próprio, por afogamento. Era preciso livrar-se dela. Se deixou chorar, porque as lágrimas, só não são vermelhas, mas têm o mesmo teor de sal do sangue. Foi assim que a matou, chorou-a ao extremo, até que não tivesse mais lágrima ou sal para derramar, até que nela não coubesse, mais nada de sal, que ficasse bem chorada e cheia.
Depois de bem morta, certificou-se de que não o importunasse mais. Amarrou uma pedra bem pesada em seus pés. Queria arremessá-la dali mesmo, onde ele estava, da margem, como se fosse um troço inútil, que se joga fora, sem cerimônia e esforço algum; mas por ser agora muito pesada, poderia emergir a qualquer momento - caso a fundura não fosse suficiente. Então, ele a transportou até um local longínquo e o mais profundo das águas escuras, densas e sujas.
Assim o fez, uma vez lá, no meio, bem distante e profundo, livrou-se dela, sem apego ou ressentimento. Ela foi vista inerte, descendo verticalmente, em direção ao fundo das águas viscosas, precedida pela grande pedra. Finalmente, foi juntar-se às águas iguais à sua consistência e origem - lugar ideal de conservarmos as más_águas, longe dos olhos, do coração e da própria lembrança.
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