1033 __ DE TEMPOS EM TEMPOS __ 02/08/19
Voltei à praça de minha infância, do meu bairro, ao lado da igreja. Falando assim, parece que falo de uma cidade do interior, mas não é, cresci na capital. Depois do quintal da minha avó - meu primeiro reduto, ela foi o meu segundo. Foi lá que aconteceram os primeiros encontros depois das missas, ou antes delas. Ali e ao entorno dela, conheci a amizade, iniciei o ensaio para o amor mulher/homem, o primeiro contato com a minha religiosidade, outras tantas descobertas à frente - até que dela eu me afastasse. Nasci, não muito longe dali; a escola era próxima, fui a festas, nas imediações; me casei nessa igreja.
O marco zero, para toda uma infinidade de caminhos a serem tomados e transpostos. Como naqueles jogos, de labirintos no papel, em que devemos atravessar pelas passagens possíveis, que nos levam para dentro, para o centro, de um canto qualquer. Nesse caso, funcionou ao contrário, a praça foi o centro - o dentro - de onde parti, para fora. Vários caminhos ali, para serem descobertos, alguns sem saída e que me forçariam a retroceder, até um ponto seguro, em que fosse possível, dar continuidade à travessia.
Lembrei-me dos cheiros de minha infância, cheirados com meu narizinho, ainda pequeno, dentre eles, um em especial, que me reportou aquela época e aquele lugar, onde vivi os mais lindos anos - o perfume da dama da noite.
Bem perto dali, na minha rua, na mesma quadra, mas do lado oposto à minha casa, existia uma, de esquina, com um grande quintal. De especial, nele, nada. Lá morava um casal de alemães, de uma certa idade, com um forte sotaque. Sobre o portão baixinho da casa, havia uma armação de ferro, que servia de guia para uma trepadeira, que enfeitava e protegia a entrada, ao mesmo tempo em que perfumava o ar, quando suas flores se abriam.
Era a dama da noite, a flor, como eu a conheci, mais tarde, a conheceria como 'cestrum nocturnum', tinha um poder infinitamente maior do que o seu tamanho, era capaz de exalar um perfume a muitos metros de distância, se o vento estivesse favorável, olha que eu morava na outra ponta do quarteirão e mesmo assim dava para sentir.
Lembro-me do seu 'João', com certeza seu nome não era esse, devia ter um nome difícil de se pronunciar, então resolveu-se chamá-lo assim - seu João, o eletricista. Uma coisa que me impressionava como criança, era a forma com que ele pronunciava a palavra 'osram', um misto de português com alemão, que só ele mesmo podia pronunciar, era engraçado. Sua mulher, a dona Ana, também não sei se o nome era esse, era uma pessoa extremamente clara de pele, cabelos finos e poucos, gorducha e simpática, fazia uns doces deliciosos; já ele, era careca.
Lembro também da dona Maria 'hungaresa', era assim que a chamavam, pequenininha e ágil, nascida na Hungria. Sempre achei que 'hungaresa', fosse o termo feminino, para quem nasce nesse país, isso também aprendi depois - hungarês é um adjetivo pejorativo de alguém pobre, magro e sofrido, nada a ver com a dona Maria, pelo menos nunca me pareceu, que fosse pobre e sofrida, embora magrinha, ele fosse mesmo.
No mesmo quarteirão, moravam e conviviam portugueses, espanhóis, italianos, tudo na maior paz, tinha até libaneses, que moravam na rua próxima. Lembro da dona Glória e seus muitos filhos, da dona Ninela e seu quintal comprido, da dona Prazeres e da vagem orelha, tenra e saborosa, crescida no seu quintal, numa cerca de arame. Lembro da madrinha Clementina, da tia Maria, que tomei 'emprestadas' de meu avô. Na minha memória, tudo isso, ainda está lá.
Voltei à praça, mas só de passagem, para que ela me fizesse lembrar, do que precisa ser relembrado, de tempos em tempos, sobre as minhas raízes, as memórias de um tempo importante, à pessoa que sou hoje. Saber de onde parti, do ponto através do qual, tracei rotas, tendo como base, ele e as coisas acontecidas em seu entorno.
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