quarta-feira, 22 de janeiro de 2020



1119 | VER E ENTREVER | 22/01/20

Suas órbitas eram frias.  Apesar dos dois olhos bem vivos e ágeis, que a tudo registravam, seu olhar não era quente.  Em alguma lugar dentro dele, tinha um tribunal, julgador e executador de toda sentença deliberada, por sua pretensiosa jurisdição, requerida pra si, como se fosse um direito inato à sua descendência real.  Em algum recanto de seu entendimento, tinha certeza de ter sangue azul, julgava-se um dileto descendente da realeza, do país de origem de seus antecessores. Como realeza que 'era', representava Deus na terra, podia julgar, condenar e mandar matar, como faziam os reis de antigamente.

A boca era melosa, quando queria.  Enganava bem, mas não por muito tempo, de perto era possível ver, a gosma que escorria dela pelos cantos.  Aos olhos mais treinados, nada ficava às escuras, nada era dúbio.  Era possível perceber também, que o que a boca dizia, os olhos desdiziam, sobretudo as ações; ou a própria boca mesmo, um pouco mais tarde, longe dos ouvidos, que ora tinham ouvido e visto o mel sair dela.

A todos parecia, que trazia 'de fábrica', uma escala, um mecanismo interno, que era impossível não ser acionado em cada momento, pra comparar e dar notas a tudo e a todos, tendo como referência, a única que considerava válida - a dele mesmo.

E foi assim, até a sua morte, achando que convencia a todos com seus maneirismos - não convencia, nem a si mesmo.  Porque no fundo, arrastava consigo, uma profunda sensação de inadequação, que o fazia ser servil e ridículo, algumas vezes, quando dava valor a coisas sem valor real.  Curvava-se às formas feitas de barro e pintadas de ouro, mas não era capaz de enxergar imagens puras e translúcidas - pra isso sua visão não era boa. 

A medida que passava o tempo, mais e mais pessoas, conseguiam 'ler' as suas reais intenções, não de pronto, nas suas palavras - mas no seu comportamento.  Podia-se ver, a carapaça calcificada, que crescia em volta dele, protegendo-o como uma concha e também impossibilitando a interação.  Viveu rodeado de gente, mas extremamente isolado, não conseguindo lidar com os sentimentos alheios, porque desconhecia suas próprias emoções, negava toda e qualquer possibilidade delas virem à tona.  Aos poucos, depois de um certo treino, as pessoas se afastavam da malícia, da sua falsidade que passava a ser escancarada.

Muitos lhe deram alguns toques, os mais amigos, os mais próximos.  A vida lhe deu outros tantos, não tão sutis, mas mesmo assim, ele tinha orgulho de ser como era.

Morreu só; antes ainda, terminou os seus dias, só.  Viveu e levou da vida menos do que poderia ter, deu bem menos do que podia dividir.  Nem a sua riqueza quis ir com ele.  Perdeu os dedos pra conservar os anéis


entrever - divisar, avistar, distinguir, prever


arte | agnes cecile

Nenhum comentário:

Postar um comentário