quinta-feira, 3 de março de 2016

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Desencontro com Nise da Silveira



Em 1985 o mito de Nise da Silveira já se espalhara pelos cursos de Psicologia. A mulher que havia trocado cartas com Carl Gustav Jung. A psiquiatra que deixara o eletrochoque, o choque insulínico e a amarração de pacientes para trás. A crítica que trouxera a loucura para as artes. Estávamos em plena Abertura, e de todas as faces desse mito, aquela que parecia mais impactante era outra: uma terapeuta que recebia qualquer um que a ela se apresentasse – a ela e aos seus gatos.
O livro Imagens do inconsciente tinha aparecido em 1981, mas como continha imagens era francamente inacessível aos pobres mortais. Nossos professores, como João Frayze-Pereira,1 falavam dela e de sua receptividade, de como ela gostava de receber e de falar. Por isso, em 1985, quando Leon Hirszman apareceu com o documentário formado pela trilogia Em busca do espaço cotidianoO reino das mães e A barca do sol, o impacto foi ainda maior. Logo organizamos uma incursão ao Rio de Janeiro e ao Hospital do Engenho de Dentro para encontrar o mito. Ela não estava. Primeiro pensamento: viajou, deve estar com Carl Gustav. Segundo pensamento: ocupada com um caso grave. Terceiro pensamento: somos tolos o suficiente para achar que ela vivia na clausura, só esperando nossa chegada. Assim como a imagem que tínhamos dos pacientes psiquiátricos, achávamos que ela só podia viver internada.
Anos mais tarde, lendo Foucault, entendi a força da ideia de que nos manicômios psiquiátricos do século XIX, o corpo do psiquiatra funcionava como metáfora do hospital – a fonte e origem da cura, o centro e o olhar da ordem, a razão e disciplina do cotidiano. Nosso desencontro com Nise da Silveira revelava muito sobre os mitos que ela empregou para subverter os muros da loucura. Muros que talvez ela tenha sentido na carne quando ficou presa, durante o Estado Novo, junto com Olga Benário e Graciliano Ramos. Muros que, junto com a antipsiquiatria de Laing e com a instituição negada de Basaglia, Nise tentava derrubar....

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