Numa relação abusiva, um perverso
narcisista faz uso de muitos artifícios para subverter sua vítima a seu intento
secreto e sinistro. A maioria deles, entretanto, passa despercebido a olho nu.
Na verdade, mais do que isso: às vezes é necessário que o relacionamento avance
até posteriores etapas para, somente então, o abuso ficar evidente. Sim, o
enredamento é confuso. É uma teia tão maligna que engana até quem já o viu em
ação - a prova disso é um alto número de psicólogos que já caiu nessa
armadilha. A sutileza de um perverso narcisista é uma verdadeira arte!
A meta deste tipo de parasita é
assustadora: levar sua vítima à completa destruição. Esta pode ser tanto
simbólica quanto a verdadeira ruína. O sucesso desta monstruosidade pode
significar a aniquilação psíquica da vítima, não raras vezes culminando em
suicídio ou na loucura. O perverso narcisista está obstinado a provar que sua
vítima é inferior e insignificante, a vampirizar até que não mais que um buraco
vazio de agonia reste onde antes havia algum brilho. Somente quando a vítima
estiver no escuro, ele sente que pode brilhar.
Mas falando disso assim pode
parecer algo distante e abstrato. Afinal de contas, como o perverso narcisista
consegue isso? Quais mecanismos ele usa? Até mesmo para quem já vivenciou na
carne isso pode parecer difícil visualizar o exato movimento, é muito mais
fácil perceber seu resultado.
Bom, como mencionei, os
mecanismos são muitos. Aqui, vou abordar apenas um: a relação de
controle-descontrole.
Durante o relacionamento, ainda
em suas fases iniciais, embora menos perceptivo nestas, o perverso narcisista -
e vale ressaltar que pode ser a perversa narcista e que podem ser relações
hétero ou homossexuais - tateia a vítima com muita sutileza. Enquanto a seduz,
esta abre seu coração e permite, assim, que o parasita adentre ao seu bem mais
precioso: a sua alma e intimidade!
Lá dentro, ele encontra, pouco a
pouco, as fragilidades da vítima. Ele busca transformar justamente aquilo que é
a sua força em migalhas. Desta forma, vai desvalorizando os seus valores e,
para isso, conta com o cúmplice perfeito: a própria vítima, porque ele a leva a
crer nisso.
Passado o estágio do
encantamento, o algoz começa a transformar seu “amor” no que ele
verdadeiramente é: ódio. Ele troca de máscara, agora, para uma mais verdadeira.
Assim, começa a direcionar ataques sutis à sua vítima: elege a ela um
“apelidinho carinhoso”, mas que denigre sua autoestima; incuti-lhe uma culpa
pesada e incisiva; isola e a faz perder a rede de apoio; absorve os sentidos de
sua vida e a faz orbitar em torno do massivo buraco negro que ele é; etc.
A vítima confusa e sem
entender vai mergulhando mais e mais
numa lama tóxica sufocante. Se ela não se levanta e deixa se abater, vem o
descarte: ela não tem mais valor, sua luz se apagou!
Mas é quando ela ensaia se erguer
que a coisa fica realmente feia.
O perverso narcisista, com sua
delicadeza venenosa, vai tocando a vítima em seus pontos fracos de maneira
frequente. Quanto mais sente a dor, mais toca. É como uma verdadeira tortura:
uma gota fresca de água pingando sobre o peito nu. No primeiro momento, ela
pode parecer refrescante. Mas ela continua. E continua. E continua. Seu frescor
passa a se tornar gelado e a cada vez que pinga a sensação é de um verdadeiro
choque! Assim, uma coisa simples se transforma numa potente arma.
A vítima se descompensa. Ela
perde o controle. Quando faz isso, finalmente o perverso narcisista atingiu
aquilo que almeja: provar que a vítima é insana e culpada! Este momento, para
ele, conserva um verdadeiro prazer, porque é prova de que ele é superior,
inocente e bom, enquanto a vítima se torna o inverso.
Vamos a um exemplo prático que
observei há poucos dias: o perverso narcisista elegeu um “apelidinho” para sua
vítima. Ela, num surto de força e vivacidade que volta a fluir por seu corpo,
se defende e diz: não sou isso! Mas não pára por aí: ele busca um cúmplice que
também evoca o apelido. A vítima, uma pessoa muito controlada, ensandecida
manda ele tomar naquele lugar abertamente no Facebook. Vale lembrar que seu
face também é profissional. Vale lembrar também que agora o algoz passa a ter
uma carta na manga: ele também é vítima!
Assim, o perverso narcisista vai
coletando seus pequenos tesouros. Pouco a pouco, vai fazendo com que eles
ressurjam na relação, mas, desta vez, de maneira acusatória contra a vítima.
Esta, ciente do que fez, ciente de sua descompensação não habitual, passa a se
culpar. O plano perverso segue seu ritmo. Ela mesma passa a se denegrir,
sujando seu nome e imagem com a lama tóxica que engoliu e agora vomita. O risco
e também armadilha é ter o mundo como platéia se virando contra ela.
Nestes momentos ocorre uma das
formas de drenagem: o perverso, ao destituir a vítima de seu controle, assume
ele próprio. O seu descontrole é o controle do perverso! Quando ele corrompe a
vítima, passa a absorver nele as características dela que inveja: ele é o
controlado, ele é que tem a razão, ela é a louca e odiosa e ele o bom.
Entretanto, estes momentos de
descontrole podem também ser igualmente preciosos. Com os últimos resquícios de
saúde, a vítima consegue se levantar. Reagindo, está a um passo da tomada de
consciência. Se continuar neste jogo, ela vai tombar e perder. Se conseguir
visualizar o que acontece, poderá lutar e investir suas forças em sair deste
poço.
Nunca desista de você!
Relações Perigosas.
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Complemento: Uma violência silenciosa: considerações sobre a perversão narcísica
por André Martins *
* Filósofo, Psicanalista, Membro Efetivo/CPRJ e do Espace Analytique de Paris, Professor Associado
da UFRJ (Faculdade de Medicina e Instituto de Filosofia e Ciências Sociais), Doutor em
Filosofia, Doutor em Teoria Psicanalítica, Pós-Doutorado Sênior em Filosofia.
Introdução
O silêncio da violência exercida pelo perverso narcísico sobre seu cúmplice não é do mesmo tipo de uma relação sádica ou sado-masoquista, tampouco a vítima da agressão silencia porque se sente intimidada. Essa violência é silenciosa e a vítima a sofre de maneira silenciosa, porque se trata de uma violência velada e insidiosa, não assumida pelo agressor, negada e denegada por ele, que sutilmente inverte a relação acusando o outro de ser o culpado pela situação. Desta forma, a vítima se sente confusa e acaba por sentir-se culpada, o que, por sua vez, inocenta o agressor. Não se trata de uma violência física, e esta não é pontual: estende-se ao longo do tempo. Neste texto, buscarei caracterizá-la fenomênica e metapsicologicamente, a partir da literatura psicanalítica sobre o tema e de minha observação clínica.
Trata-se de um tipo de perversão que, embora certamente sempre tenha existido, talvez encontre na cultura contemporânea um terreno particularmente fértil, tornando-se mais comum do que poderíamos supor. Não é uma perversão explícita, mas ao contrário, imiscui-se no dia a dia, nas pequenas relações, nos pequenos atos, tendendo, assim, a passar despercebida. Em geral, até mesmo a vítima leva um longo tempo para perceber, e sobretudo para reconhecer, estupefata, que está presa nessa teia, posta nesse lugar; que tem sido cúmplice dessa violência silenciosa, a qual ela não desejou, mas que vem ao longo do tempo fazendo ruir sua auto-estima e sua paz interior.
O silêncio da violência exercida pelo perverso narcísico sobre seu cúmplice não é do mesmo tipo de uma relação sádica ou sado-masoquista, tampouco a vítima da agressão silencia porque se sente intimidada. Essa violência é silenciosa e a vítima a sofre de maneira silenciosa, porque se trata de uma violência velada e insidiosa, não assumida pelo agressor, negada e denegada por ele, que sutilmente inverte a relação acusando o outro de ser o culpado pela situação. Desta forma, a vítima se sente confusa e acaba por sentir-se culpada, o que, por sua vez, inocenta o agressor. Não se trata de uma violência física, e esta não é pontual: estende-se ao longo do tempo. Neste texto, buscarei caracterizá-la fenomênica e metapsicologicamente, a partir da literatura psicanalítica sobre o tema e de minha observação clínica.
Trata-se de um tipo de perversão que, embora certamente sempre tenha existido, talvez encontre na cultura contemporânea um terreno particularmente fértil, tornando-se mais comum do que poderíamos supor. Não é uma perversão explícita, mas ao contrário, imiscui-se no dia a dia, nas pequenas relações, nos pequenos atos, tendendo, assim, a passar despercebida. Em geral, até mesmo a vítima leva um longo tempo para perceber, e sobretudo para reconhecer, estupefata, que está presa nessa teia, posta nesse lugar; que tem sido cúmplice dessa violência silenciosa, a qual ela não desejou, mas que vem ao longo do tempo fazendo ruir sua auto-estima e sua paz interior.
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Há que se considerar que para todo algoz...existe alguma vítima que se presta a isso! Ambos devem ser conscientizados das suas posições inadequadas.
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