sábado, 30 de março de 2019

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RAFAELA, DE MADRI

Havia chegado apenas com minha carcaça. A mente estava em outro lugar, quem sabe na ‘nuvem’(?) ou em trânsito, junto com meus dados móveis!   Estava olhando as últimas notícias, das quais não podia prescindir – os conhecimentos e informações desnecessários, que até agora vivi sem e que não me fizeram a menor falta – mas hoje, não dispenso.  

Nem os barulhos, nem os movimentos me faziam acordar pro que acontecia à minha volta.  Foi preciso, um par daqueles tênis infantis passar por mim, atingindo minha visão periférica,  com as suas luzes ‘natalinas’ fora do natal, pra que eu me apercebesse de onde estava.  

Eu sabia que a minha mente chegaria em algum momento, e ela chegou. Deixei o celular de lado – a pequena tela nas minhas mãos – pra ficar de olho numa tela maior, um painel que chamava os números das senhas de atendimento.

Aguardava paciente e entediada, como tantas outras pessoas, passava de uma cadeira à outra, na expectativa de me chamarem - a mim ou à minha senha, numa espera que prometia ser longa.  No meu caso, mais longa que dos demais, porque se tratava de um 'encaixe’ - só possível se houvesse disponibilidade e boa vontade de todas as pessoas pelas quais eu passasse até o atendimento médico enfim acontecer.

Tinha deixado meu livro em casa, não pude ler; queria escrever, não achei uma caneta na bolsa, apenas papel, não pude escrever na hora - o que só agora consegui. Usei o celular até a bateria esgoelar.

Fiquei observando a arquitetura do prédio, olhei pras paredes, percebi uma coluna um pouco diferente, arredondada, talvez metálica, de textura também diferente e imaginei que pudesse ser uma construção pré-fabricada.  Pude reparar que as tubulações eram aparentes, o que reforçou ainda mais a minha tese de ser uma construção pré-fabricada.

Mas o tempo, só passou rápido mesmo, quando eu engatei uma conversa com uma senhora que estava ao meu lado.  Aproveitei uma rápida exclamação dela pra entabular nossa conversa.  De início, bem genérica, sobre os atendimentos e suas reclamações de abusos que cometem com os idosos. 

Com o tempo - e isso, nós tínhamos muito - a conversa foi se tornando mais pessoal e íntima. Ao final - o que conhecíamos uma da outra, era o suficiente pra que eu passasse a admirá-la como ser humano.


Mãe de três filhos, aos quais tinha criado sozinha, depois do abandono do marido. Tinha trabalhado de dia numa metalúrgica, à noite lavava roupa ‘pra fora’ e de fins de semana fazia faxina, em casas de família, pra ganhar um pouquinho mais.  Assim é que tinha conseguido educar aos três filhos, hoje adultos com seus próprios filhos e netos - seus netos e bisnetos.

Gosto de conversar com as pessoas que me permitem essa troca, de fatos e experiências.  Posso garantir que a nossa, foi grande.  Acredito que tenha sido boa pra ela também porque no final ela me disse ter tido prazer em conversar comigo, perguntou o meu nome, eu lhe disse, e eu perguntei : - "E o seu?" ... ao que ela respondeu: - “Rafaela ... é, meu nome veio lá de Madri, da minha abuela”.

A minha vez chegou, minha senha era 26, a dela 28, nos despedimos.  

Fui atendida, felizmente, havia como tratar com medicamentos,  os sinais e sintomas físicos – os efeitos do mal que me levou até lá – mas a causa ou as causas, permaneceriam sem remédio - porque ainda não inventaram um.

 30/03/17


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