quinta-feira, 31 de outubro de 2019



1086 | NADA MAIS OU ALÉM | 31/10/19

Foi quase, como ter uma experiência fora do corpo. Eu o sentia, suar pelo sol que incidia sobre ele, mas não conseguia encontrar a minha alma, dentro dele, acho que ela estava fria.  Se naquele momento, chovesse canivete aberto, eu sentiria quase a mesma coisa, da mesma forma como o suor era produzido, para amenizar a alta temperatura; a pele cortada, verteria o sangue pelos pontos perfurados, nada mais ou além disso.  O corpo era um vasilhame quebrado, ou uma película rompida, através da qual se escapava a matéria gasosa, por alguns pontos que se encontravam abertos.

O que me pesava nas pernas, não eram as veias entumecidas pelo calor, nem os músculos distendidos; mas o fluxo dos pensamentos, que para lá, teimavam em descer,  me tornando lenta no caminhar e no pensar.  Eu pensei: se não seria essa, a percepção de uma alma penada?

Era como se toda ela, estivesse alienada, a ponto de não perceber, o que se passava em meu corpo - ou melhor - percebia, mas não mais do que, como uma simples sensação física.  Ela só se detinha nas suas conjecturas, e nelas concentrava todo o seu vigor, já bem enfraquecido.

Eu me senti, exigida demais, eram duas forças que tentavam, me partir ao meio, dividir recursos para ambas seguirem em frente.  A alma roubava para si, todas as impressões e atenções, e tanto quanto o corpo, se arrastava feito autômato, que obedece a um trajeto pré determinado.

Demorou ainda algum tempo, até que eu tomasse novamente, a posse do meu corpo, que andava sozinho, desconectado e desencaixado, daquilo que é justamente, o que lhe dá razão de existir.


arte | rafal olbinsky



812 | O MURO E O BURACO | 31/10/18

Construíste um muro em volta de ti.  Cavaste um buraco e nele te colocaste.  Os muros te mantiveram afastado e a salvo, o buraco se tornou tua trincheira.  Ninguém de ti, pode se aproximar, porque o muro ficou muito alto.   A trincheira não era necessária - pois não havia guerra.

Hoje, reclamas da distância, e de que ninguém te procura.  Permaneceste muito tempo entre muros, e ainda estás.  Ficaste muito abaixo do chão, local onde te pudessem ver.  Sempre defensivo, na impenetrabilidade, dentro de barreiras e obstáculos imaginários, impostos a nós, incômodos, construídos não por outras pessoas - mas obra tua.

Longe dos olhos, do contato e da convivência, ilhado sem estar numa ilha e sem mar, te deixaste ficar, distante - o teu coração dos demais corações.  Fechaste todas as portas que se tentou abrir, frustrando toda possibilidade de aproximação.  Faltaste em muitas ocasiões importantes.  Negada foi a tua participação, quando era esperada.

Não restou outra opção, senão aceitarmos o que se mostrou impossível de se modificar, por respeito, até mesmo por desistência e cansaço de nossa parte.  Com o tempo, isso virou coisa normal, ninguém mais perguntava sobre ti.  A vida passou, seguiu.  

Quem determina o quanto faremos falta, somos nós mesmos.  De que maneira?  Estando presentes, participando, compartilhando todos os momentos, sem garantias de boas emoções, sem certezas de satisfação ou qualquer tipo de recompensa rápida e prevista.  

Às vezes, nos momentos mais tenebrosos, é que existe a chance de nos aproximarmos das pessoas, ao darmos a nossa contribuição, da forma que for, com a nossa simples presença presente, dando a elas um pouco mais de segurança, sairemos satisfeitos conosco mesmos, o que acaba  por fortalecer o vínculo, seja ele qual for. 

É o que diz o ditado popular, muito sábio e verdadeiro:  "Quem muito se ausenta, uma hora deixa de fazer falta."  A tua presença se faz desnecessária, porque tu não te fizeste ver, ouvir e sentir.





551 | ONDE É QUE ESTÁ ESCRITO? | 31/10/17


Eu sei que as respostas estão aqui. Onde mais?

Vou precisar jogar o jogo do 'ligue os pontos', pra chegar até elas.

Onde as coloquei, que de tão bem guardadas, não as encontro?

Onde foram inscritas?  Em códigos, numa combinação secreta de algarismos e letras - a chave da fechadura?

Talvez eu necessite de alguma claridade, antes de quebrar uma janela ou inventar uma porta.

Ajudaria, uma pequena chama acesa nesse cômodo de 'acumulador'.  Acesa por mim, ou por outra pessoa, que me permitisse ser possível garimpar, em meio à bagunça do desnecessário,  meus verdadeiros tesouros.

Que os tesouros que procuro, não estão nos garimpos alheios e sim no meu - ainda que bem escondidos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019




550 | RODOPIO | 30/10/17

Pela força centrífuga
... bateram em fuga.
Os pensamentos meus
... eu lhes disse adeus!
Livrei a cachola
de toda caraminhola!

Me deixei levar
e comecei a rodopiar
sobre um único pé.
Eles foram morar no rodapé!




811 | DESUMANA | 29/10/18

Sabia que naquele dia, seria preciso pegar no tranco, porque a minha disposição tinha zerado, há umas 36 horas, pelo menos.  A semana ainda não acabara, mas eu sim.  Eu estava tão preguiçosa quanto o sol. 

Subi a ladeira bem devagar, respirando fundo, usando até a última porção de ar, para chegar até o ponto de ônibus, que não demorou a passar.  Não por estar ofegante, mas por falta de pernas, que se mostravam pesadas e não queriam responder ao meu comando, foi difícil chegar ao topo.

O verde-vegetação era a cor mais rara de se ver, exceto pela roupa das pessoas, que decidiram vestirem-se com ela.

Já à caminho do meu destino, vi o pinheiro, ao fundo da marmoraria - inatingido pela fúria do homem, cuja indecência deixou sobrar, sozinho.

Para cada animal silvestre comercializado, dez morrem.  Quantas espécies ao lado do pinheiro teriam morrido, para que ele fosse poupado?  Tal  ato, teria sido por bondade, descuido ou capricho?

Conhecendo a índole humana, afirmo que por seu extremo capricho e egoísmo!  Pelo fato de ser imponente e exótico - tinha sobrevivido à fúria desumana.



549 | DAS RANHURAS E RACHADURAS | 29/10/17

Ranhuras, sempre devem existir em mim, pra  que eu possa me encaixar ao ressalto de uma outra parte, que me faça melhor, menos imperfeita.

Rachaduras, devo cuidar pra que por elas entre o que é preciso dentro de mim, e que através delas eu possa drenar o que não me serve mais.  Se possível for, por elas espero que vertam as gotas que podem irrigar a estrada dos que vierem depois.

Através das ranhuras e rachaduras, farei as modificações necessárias, e poderei manter meus sentimentos, pensamentos e ações numa linha de harmonia, pra obter um caráter íntegro, perante mim mesma.




20 | BALA DE ANIS | 26/10/15

Antes que outubro se acabe, devo contar-lhes uma história.  É sobre minha infância, de como a senti e de como eu me lembro dela.

Crescemos no quintal da casa da vó, nós quatro, eu a mais velha; numa escadinha de dois em dois anos, depois meu irmão, minha prima e minha irmã.

Poderia falar sobre muitos acontecimentos durante esses poucos anos... Minha irmã odiava mantecal. Eu gostava de "delicado" que o vô comprava a granel, embrulhado em papel comum... Eu adorava as azuis, gosto de "anis", então eu comia, as de todas as cores e deixava minhas preferidas por último. 

Brincávamos de praia, sabe o que é isso? O sol deixava sombras no chão, onde era claro era a água, onde dava sombra era a areia. Eu gostava de brincar de escritório! As brincadeiras mais loucas eram para os outros três, mais novos. Tinha uma que causava medo: era pegar um espelho e colocá-lo debaixo do nariz para que refletisse o céu, e andar sem saber onde pisar! Parecia que íamos cair... Nem sei quem inventou!

Comíamos doces baratos e éramos felizes! Só tínhamos aquele quintal e era grande o bastante pra correr e crescer! Acho que lidamos bem com as "minorias", falo sobre como nos entendíamos(às vezes não muito) com meu irmão, que era o único homem da turma.

Lembro da hora do banho, era quase uma linha de produção. Do mais velho ao mais novo, essa era a seqüência, só alterada pela minha prima que ficava com os dedos enrugados e era deixada sempre por último.

Para eles eu era a mais chata, porque minhas idéias eram diferentes das deles! Mas a cumplicidade e o amor eram presentes! Até hoje somos muito ligados, a felicidade de um é a do outro e a dor do outro é a dor de todos!

Pudemos desfrutar do carinho de avôs, de pais, tios e amigos! Cada um tomou seu rumo, como era previsto! 

Antes que fôssemos cuspidos para fora do "feroz carrossel da vida", tivemos a noção exata do que é "ser feliz". É essa lembrança que nos mantém de pé!



terça-feira, 29 de outubro de 2019



44 | UM OLHAR SOBRE O COMPORTAMENTO HUMANO
FÔRMAS E FORMAS
29/10/17



O toque frio da pérola com a pele humana é semelhante à nossa resistência à dor, quando adquirida.  Não nos remete à concha fustigada pelo grão de areia invasor.  A pérola em contato com a pele rouba calor, a aparente frieza de nossa resistência não é de graça.

Os pensamentos entram na mente por uma porta giratória, se demoram um certo tempo por lá, emaranhando-se com os que lá já existem, e saem pela mesma porta.  Podem voltar, ou não.  E por não voltarem, quase me esqueço deles, tenho uma vaga lembrança, com a estranha sensação de que passei por uma lobotomia involuntária, sem certeza de que seja real.  Podem ser, um dragão empoleirado sobre um castelo em chamas, ou as bochechas redondas de uma criança dormindo no berço...

O movimento anti-horário da porta, que não tem trava, é constante e intenso – e é surpreendente o quanto pode caber lá dentro!  Oficina eficiente e eficaz para trabalhos específicos de transformação e aprimoramento – onde nada se perde.  Conhecimentos e pensamentos que permanecem guardados há tempos, encontram serventia.

A mente opera processos que nos escapam ao ‘racional’ – que não conseguimos explicar.  É um instrumento, que quanto mais se desgasta mais forte fica - capaz de alterar a matéria e renovar o mundo.  Como?  É desse laboratório que saem as novas fôrmas que darão origem às novas formas.


arte | asili


1085 | BLUE NARCISSUS | 29/10/19

Nunca vi nenhum, nem azul, nem de outra cor qualquer.  Acho que foi num filme, passado em outro continente, de uma outra época, com clima propício a que eles floresçam ... que eu os vi, num pequeno ramalhete, de puro céu encantado, cuja cena nunca saiu da minha cabeça.

Se essa flor se transfigurasse em gente, morreria de inanição, ao mirar-se nas águas do lago, esquecida de si, hipnotizada por sua beleza, reforçando o mito.  Até o céu invejaria sua cor.

Vejo um buquê de narcisos azuis, em minhas mãos, eu os recebo, com uma sensação de quem toca a seda, com a impressão de ser transportada para um outro tempo, um outro país.  Depressa eu os disponho num vaso brilhante de porcelana branca e arabescos prateados, com água fresca, sobre a minha mesa de cabeceira.  Nas noites, eu adormeceria sob o efeito de seu poder e todas as manhãs, as primeiras imagens, registradas pelas minhas retinas, seriam o céu encantado, que eles representam.







295 | VAZIO | 29/10/16


Esse vazio – vem de onde?
Em que tempo se esconde?
Por que, quando falo, não me responde?

Deve habitar nas profundezas ...
e aventura-se a vir às redondezas ...
impedindo que eu veja as belezas ...
questionando todas as certezas!

Decerto, um ser invertebrado
que me faz sentir inadequado
com seu pássaro de bico esfomeado
devorador de tudo que lhe é dado
que tudo arremessa a um buraco inacabado!


arte | agnes cecile

segunda-feira, 28 de outubro de 2019



548 | MINHA NOVA VERSÃO | 28/10/17

Das raízes brotarão os meus pés;
do meu tronco, as pernas, o abdome, o peito.
A cabeça ficará em meio à copa das folhas;
os braços, misturados entre os ramos
todos, em direção ao alto!
As flores trarei nas mãos!
A seiva, percorrerá todo o meu ser,
até que faça pulsar de novo, o
meu coração!





1084 | FRAGRÂNCIAS, EMOÇÕES E FRASCOS | 28/10/19

A emoção, em seu estado natural, é como substância volátil, predisposta a expandir-se e a tomar conta do espaço que a circunda, até que se dissipe totalmente, em vapores imperceptíveis ao olhar, apenas guardando um pequeno resquício de odor, sensível ao olfato mais treinado.

Ao contrário das substâncias que se dissipam, sem causar grandes impressões ao meio, além de uma leve lembrança olfativa; a emoção solta, pode desencadear grandes alterações nas relações de todo tipo.  

Emoções são como perfumes, que carregam suas notas marcantes, mas que podem ser envasadas, cuidadosamente, em frascos bonitos, para serem usadas com moderação, nos momentos certos, a nosso favor, sem ferirem olfatos alheios, nem mesmo o nosso.  Na dose adequada podem perfumar um relacionamento; já em altas quantidades, podem asfixiar, envenenar literalmente, uma relação ou uma pessoa.

Uma emoção não se represa, não se retém cativa - essa minha analogia é bem sutil, por favor entendam - emoções são reações a estímulos recebidos, que devem atuar como nossas parceiras, para nos ajudarem a 'lermos' o que nos acontece e vivermos as nossas experiências, de uma maneira positiva.  Elas nascem muito antes do que os sentimentos, numa espécie de rudimento deles, do que virão a ser.

Eu quis dizer, que uma emoção, só pode ser útil, se for reconhecida, entendida de onde traz sua raiz, como ela cresce e se agiganta, por que se agiganta, acabando por se tornar nefasta, em desdobramentos desagradáveis, quando não nos damos conta, de que ela nos domina - sendo que é certo, que tenha nascido de algo tão natural e legítimo. 

arte | lyn

sexta-feira, 25 de outubro de 2019



547 | A VIRADA | 27/10/17


Era 31 de dezembro, noite da virada, em que as pessoas se programam sobre o que fazer, comer, beber e vestir.  Alguns preferem o branco – por tradição ou pelo efeito da cor nas fotos.  Outros escolhem outras cores, até por rebeldia.  Uns se contentam em vestir o que têm.

Ela escapou do branco total, tinha escolhido pra aquela noite, um vestido branco com pequenas listas azul marinho.  Era algo bem atual, com babado na barra e nas mangas – uma verdadeira pechincha.

Escolheu brincos azul royal, de pedras brasileiras pra usar junto, correntinha, pulseira e anel dourados.  Usaria um tamanco de verniz branco, com sola de cortiça – perfeito!

Cuidou do cabelo – encaracolou as pontas.  Caprichou na maquiagem, acertou nos tons – deu destaque aos olhos.  Passou um perfume que havia ganho e guardado pra essa ocasião.

Depois de todo o preparo, colocar o vestido foi a última coisa que fez.  Olhou-se no espelho e gostou muito do resultado, tinha superado a expectativa.  Até seu cabelo tinha colaborado – e as mulheres sabem o que isso significa, coisa rara.

Estava se sentindo muito bem, confortável, vestida adequadamente pra ocasião e local.  Sabia disso.  Embora simples e discreta, a sua escolha lhe caiu bem.  Preferia sempre pecar pela falta, do que pecar pelo excesso de adornos.

Foi nessa hora, em que ele, seu companheiro, como quem não entende nada de estilo ou delicadeza, olhando pra ela, a mirar-se no espelho, fez o seguinte comentário:

“Você vai com essa roupa esquisita?”

Como em outras oportunidades, teria sido um balde de água suja, despejado sobre ela – capaz de desmanchar o penteado, encharcar sua roupa e desintegrar sua autoestima.  Dessa vez não.

Pela pausa de silêncio que se fez, parecia até que tal comentário passaria em branco.

Aí então, ela com uma voz calma e assertiva, fez a pergunta:

“Quando foi?”

Ele não respondeu, porque não entendeu, achou que ela começava um outro assunto.

Ela perguntou de novo:  “Quando foi?”

Ele, invocado disse:  “Quê? Foi o quê?”

Aí então ela fez a pergunta completa:

“Quando foi que você me fez um elogio?”

Ele não respondeu, não tinha a resposta.

Mas ela tinha e falou:  “É de sua essência ser rude, sempre tentar acabar com a alegria do outro!”

Se antes ele não tinha resposta, agora muito menos, se calou por completo.

Ela acrescentou com a mesma calma e assertividade:  “Eu estou me sentindo muito bem e sei que estou bonita.  Guarde a sua opinião pra si mesmo!”


Ele continuou sem palavras - não porque tivesse mudado de opinião a respeito – mas porque, pela primeira vez ele entendeu, como se ela tivesse ‘desenhado’ isso pra ele – que a opinião dele não fazia a menor diferença pra ela!



21 | ENIGMA | 27/10/06


Ao longo dos anos colecionei lindos retalhos para confeccionar uma colcha, com muito carinho.

Escolhi um tema, coloquei-me a costurar um a um, e vi minha colcha criar forma...

Quando achei que estivesse pronta, percebi que havia um retalho muito bonito, mas que não se encaixava no tema escolhido.  Ele sozinho, já seria motivo para uma outra colcha, com um outro tema, que hoje me agrada muito mais do que o anterior.

É a primeira, penso que dela dependa o calor de outras pessoas, mesmo que não me aqueça totalmente! Já que comecei devo terminá-la!
  
Esse retalho, que se destaca e destoa, julgo haver razão para que me deparasse com ele somente agora.  De alguma forma, passou a fazer parte dessa colcha, eu o integrei sem desprezá-lo, de um modo que só eu sei o porquê, e qual o sentido dele estar lá!  Será como um enigma a ser desvendado!

Afinal essa é apenas uma, das tantas que farei!

arte | neneca barbosa


810 | SOB OS OLHOS DO POETA | 26/10/18

O olhar de cada poeta
é um tanto, visionário
vê, mensagem secreta
no fato usual do cenário
para além do sistema binário.

É certo, entortar a vista
e assim engrossar a lista
das coisas inimagináveis
e fugir das presumíveis.

Entre o possível e o não
tem sempre muito chão.
Certo, que todo poeta tem
um poderoso arsenal
que usa como ninguém
sondando o bem irracional.

Tem mil formas de descrever
a simples formação rochosa:
... como perfil de mulher
... sendo um botão de rosa
... torre que espeta o céu
... ou bordas de um camafeu.

No certo, o errado é barrado
no errado, o certo
na certa, está por perto.
É isso o que ele vê.
É nisso que ele acredita.
Se é isso o que você lê
entendeu toda coisa contradita.
Esta, é dele, a desdita:
que toda verbal eloquência
não lhe permite acertar a rota
para sua melhor vivência.
 E toda poesia se desbrota!



546 | UM BOM DIA | 26/10/17


A felicidade sempre morou ao seu lado,
a uma parede de distância,
ao alcance da mão.

Ele nunca dignou-se a bater-lhe à porta,
fazer-lhe uma visita.

Ou forçar um encontro casual, na rua,
pra sentir como ela era boa.

Imaginou sempre, bons muros entre os dois,
altos e grossos, aos quais escalava, às vezes,
curioso, pra espiar como vivia a vizinha.

Não teve a coragem de abrir a janela de sua casa,
toda a vez que ela passeava pela sua calçada.

Não conseguia olhar em seus olhos
e nem lhe dar um bom dia.

arte | jamie heiden

32 | DONA | 26/10/09
  
  Dona, julguei que seria
Do amor, que me tem
  Como espécie de refém
    E me garante a alegria

   Me leva pra onde quer
      Faz os sonhos de mulher
      Nisso há pouco senso
      A ele é que eu pertenço!
      





1083 | EM CARNE E ESPÍRITO | 25/10/19

Pela lógica mundana e humana, os pais não deveriam enterrar seus filhos.  O contrário, sim, seria o correto na ordem natural das coisas finitas, que ao final da existência, devolvem à terra e ao ar, os elementos de sua constituição física.  A semente da nova vida é depositada em vida, pelo amor e não pela vontade de aqui permanecer eternamente, como nos diziam, quando crianças - 'ficar pra semente'.

Além da dor sentida, visceral, insuportável e quase mortal,  por sofrerem a separação do bem mais precioso, arrancado de seus braços, como uma poda forçada; cujos prazos de validade deveriam ser maiores, por terem nascido depois e através deles; aos pais fica, o quase impossível e inumano desafio, de permanecer caminhando, quando lhes falta o pedaço tão querido, arrancado a ferro e fogo, sem piedade, deixando cicatrizes dolorosas e feias, que nunca desaparecerão.  É impensável passar por tudo isso, sem uma ponta de revolta e questionamento - pela lógica humana, isso parece e é sentida, como coisa irracional.

Nunca mais serão os mesmos, nem a vida voltará a ser como antes, olhos e ouvidos não terão a mesma função, será preciso aprender a enxergar de novo  e a reaprender a ouvir, a sentir.  Andarão por aí, porque têm que andar, porque ainda, os seus prazos de validade não se extinguiram; mas a cada passo que derem, sentirão presente, o pedaço que lhes foi extirpado, entumescido, formigando, doendo e até coçando, às vezes, como nos casos de amputação de membros - a matéria não está mais lá, mas a sensação é de que está sim.

Os pais devolvem, não só a carne tenra e querida, cedida por eles mesmos;  mas restituem também o espírito, a eles confiado, para viver em seu ninho, por tempo indeterminado - que agora toma um outro rumo.