segunda-feira, 29 de março de 2021

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PAIXÃO E LINGUA MORTA





Só pude conjuga-la, no tempo presente e na primeira pessoa do singular; porque a paixão, sem companhia, não tinha futuro - fazia uma carreira instantânea, mas solo.  Não fazia sentido, dar-lhe esperança, como inútil é, oferecer unguentos ou poções a um moribundo.  Era isso o que acontecia - estava moribunda e não sabia, era só uma questão de tempo, com dias contados - estava fadada ao fim de seus instantes de glória e muito mais próxima dele, do que imaginava. Minha intenção nunca foi prolongar seu sofrimento. 

Apesar de vigorosa e avassaladora no início, agora consumia sua própria carne, mostrava-se fraca e necessitada de uma transfusão de energias vitais, para sobreviver.  Isso, eu não faria, porque estaria a transferir-lhe minhas próprias forças, as mesmas que me fariam falta, quando ela se fosse.  E nessa toada, eu a vi arrefecer-se, perder corpo e calar-se.

Na maior parte do tempo, acho que ela se foi de fato, mas subitamente do nada, quando menos espero, me vêm à lembrança, algumas cenas e sensações daqueles tempos, afloram-me à pele e dou conta, de que ela não se foi de verdade, que ainda - ou ela guarda um tanto de vitalidade ou é a memória, que está a pregar-me peças.  

Nessas horas, entramos em conversação séria, para estabelecermos um diálogo franco, onde tento convencê-la, de que não é mais, quem ela pensa ser - uma paixão.  Na verdade é mais um monólogo do que outra coisa, mas eu prossigo nos meus argumentos, embora sem saber ao certo, quem convence quem!

Nessas tentativas de entendimento, digo-lhe que pelo tempo e pelos acontecimentos decorridos, deve considerar-se como algo mais parecido com um sentimento, não mais uma emoção.  Mostro a ela, que agora é mais tranquila e não tão premente, por estar mais madura; mais incondicional, porque escolhe permanecer viva, mesmo sabendo, que encontrar correspondência é coisa fora de questão.  Nem sempre é possível chegarmos a um consenso, invariavelmente, enrosco-me nos braços de nossas recordações ou constato, que a comunicação entre nós, se dá através de alguma língua morta.

29/03/21




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