1212
ISSO POSTO
31/08/20
Ao gosto contraposto, de armas apresentadas,
sucede desgosto anteposto. O metal em pontas reviradas
é um antegosto imposto, de intenções conspiradas.
É sentimento decomposto, por raivas transpiradas.
1211
JÁ É TEMPO
28/08/20
Já é tempo de fazer calar a mente. Cruzar sobre a boca fechada, um grande indicador - em formato de 'xiu', categórico e tácito - mostrando quem manda. Já é tempo, de direcionar as vertentes do pensamento, a terrenos mais férteis.
Lançar palavras a um coração inóspito, é como enterrar sementes boas, em chão pobre de nutrientes. Por mais que o irriguemos, nada crescerá acima dele. Dentro do charco, aparecerão somente, alguns pontaletes de palafita, que com o tempo vão se tornar esverdeados e pegajosos, impregnados pelos dejetos que boiam em suas águas.
1210
LUTO E PERDA
26/08/20
Luto é o período necessário, para se carpir um perda. Nem à toda perda, corresponde um cadáver. Há perdas que nos fazem entrar num luto, em que não existe um corpo, para chorarmos sobre ele ... nem por isso, é menos triste ou doloroso.
Nesses casos, enterramos as nossas expectativas - a coisa mais inevitável de se ter ... e que tem morte certa, na maioria das vezes.
carpir - arrancar (fios de cabelo ou de barba) em sinal de dor, de sentimento.
1209
COM QUE MÁSCARA QUE EU VOU?
26/08/20
Há bem pouco tempo, a pergunta era: com que roupa que eu vou? Devo me vestir à vontade, ou devo ser formal?
Na conjuntura atual, ninguém convida mais para um samba ou um café. Seja para onde for, qualquer roupa serve, porque os lugares são tão poucos, que ninguém notará, se você estiver usando a mesma roupa, ou se não estiver, muito inadequadamente vestido, as prioridades agora são outras. O importante é ter algum lugar para ir e poder ir.
A questão crucial agora é: qual máscara vou usar? Aquela que não estrangula minhas orelhas? ... aquela que não faz coçar meu nariz? ... aquela que me deixa respirar?
Ir às compras, passou a significar, ir ao mercado, açougue e farmácia. Qualquer encontro casual vira um evento. É! ... os tempos mudaram, mesmo!
1208
ENQUANTO HÁ
25/08/20
Na surdina, a vida interina anseia sair e se tornar permanente, ela quer ser sentida em plenitude, enquanto há. Estivera latente, por tempos ... cansada de esperar a chegada cavalaria; da próxima estação: das condições favoráveis, de temperatura e ventos propícios; de caírem os muros; de se abrirem as portas e outros tantos motivos louváveis de procrastinar.
Vida é energia; é água, que se estagna quando parada - em poças escuras e fétidas; é dores, nos músculos e tendões - ao ficarem privados de movimento, impedindo a fluência constante da própria vida, em sua mais importante função - de fazer circular as águas e as emoções; transformando-as em força, ou em movimentos prazerosos ao corpo.
Eu quase sinto! ... Não! ... Eu sinto realmente! ... Sinto formigar as pontas dos meus dedos, como se toda a energia contida, quisesse sair de uma só vez, pelas mãos, através do rompimento da pele, próxima a unha de cada dedo. Sinto também, os órgãos pulsarem, como se tivera outros corações; o calor vem de um pequeno vulcão, não extinto, que apenas dorme, enquanto mantém quentes, as águas subterrâneas.
1206
LACUNA OU FECHO
21/08/20
Engana-se quem pensa que o silêncio é intervalo silencioso, de ar parado, sem sons que o atravessem. É nele, que pairam as memórias retumbantes das palavras ditas, mais a intenção daquelas que não foram proferidas.
Pode-se ver, as palavras de costas, se afastando, com fúria gesticulante e indignada, batendo com força, o salto dos seus sapatos, no chão. Algumas, podemos ver, que nos olham e ainda gritam, com rostos desesperados. Outras, nada falam, só observam, com ar de desencanto e desesperança.
O silêncio pode ser, ainda, o último recurso, usado como medida extrema, quando as demais tentativas de diálogo falharam; ou até mesmo - ser a própria desistência, em si. Ele pode representar uma pausa/reticência, ou um ponto final na comunicação - o momento exato, onde se 'joga a toalha'.
De fato, uma imagem é melhor do que mil palavras, mas algumas palavras têm o poder de formatar uma imagem, que dificilmente se apagará.
Eu prefiro pensar, que o silêncio seja um espaço para meditação, de ambas as partes, e que logo mais, o diálogo será retomado. Digo isso, porque acredito, que dialogar, seja a única forma de alcançarmos uma convivência harmoniosa, onde sempre é possível estabelecermos de comum acordo, as regras que devem prevalecer. É também, a única maneira de aprendizado e crescimento do ser humano, de como lidar com as arestas particulares de cada um, dentro de um território comum a todos, e que precisa ser partilhado, com educação e respeito. Há que se considerar, o por quê, de uma pessoa assumir a atitude de se calar, depois de um discurso eloquente e enfático.
Apesar das diferenças entre as pessoas serem inúmeras, são as nossas semelhanças, que devem nos unir - os pontos que temos em comum ... e não as nossas divergências, serem o motivo de nosso afastamento.
Silêncio pode ser lacuna, onde cabe um 'to be continued' ou pode ser o próprio 'the end', vai depender do grau de maturidade das pessoas envolvidas.
1205
SE 'SIM' OU SE 'NÃO'
17/08/20
Hoje é um dia daqueles. Não sei se quero ir ou ficar, e na minha inércia, acabo por responder a pergunta que eu mesma formulei - eu fico. Se me perguntassem: se sim ou se não? ... eu responderia: talvez, ou quem sabe nem respondesse, pois estou momentaneamente, privada da capacidade de decisão.
Nem sei se quero algo doce ou salgado, quente ou frio; se é a minha língua que pede, ou se é a língua de dentro, desejosa de um outro sabor, que exige sentir um gosto diferente. Isso também desconheço - se sim ou se não. Não quero comer, embora coma, para depois me arrepender, porque o segundo estômago se encontrará tão vazio, quanto antes esteve, eu sei. Não é fome, nem vontade de comer de fato, isso é fato.
Hoje ando no meio do ar, sem nada debaixo dos meus pés - dando um salto no vazio ... ou melhor, dando um 'arrasto no vazio' - tal o comprometimento da minha mobilidade.
Quero gritar, mas falta boca para tanto. Bem provável, que até ele - o grito - me decepcionasse, eu ficaria desapontada com a sua performance, seu agudo ou rouquidão não seriam suficientes de externar o que sinto. Não grito, nem nada.
Tudo isso é coisa minha, pois passei o dia como outro qualquer. Mentirosa, eu fiz minhas tarefas, mais o que precisou ser feito, sem que ninguém soubesse do meu estado apático, nem tampouco, suspeitasse do que se passou comigo.
Vivi o dia, com uma estranha dentro de mim e a levarei para a cama, no final dele. Quero que acabe logo, para encerrar a tortura, pois hoje está sendo demais. Afinal, nem mesmo eu, me aguento. Não aguento carregar-me e ainda carregá-la, assim - sem opinião, sem se decidir nas mínimas coisas. Amanhá, será diferente. De manhã, acordarei só, na minha cama, sabendo o que quero comer e o que quero sentir, ela terá ido. Poderão refazer a pergunta - se sim ou se não? ... espero poder responder.
71
UM OLHAR SOBRE O COMPORTAMENTO HUMANO
DO BURACO MAIS FUNDO, QUEM É O DONO?
13/08/20
Qual é o buraco mais fundo? É aquele que nunca poderei encher.
Então, ele não é meu. O meu - é só meu - você não pode enchê-lo, porque só eu sei, do que ele pode ser cheio, nunca você.
Por mais que eu tente encher o buraco do outro, ele nunca ficará menor, porque eu o estarei enchendo de coisas, que nem imagino, se são ou não, as necessárias e adequadas.
Só o outro pode encher o seu próprio buraco, porque ele sabe do que carece, do que faltou, do que não recebeu, ou do que não se deu, a si mesmo. Por mais que se dê a alguém ávido de receber, nunca o preencheremos na totalidade.
O que falta, a cada um de nós, é coisa pessoal, particular e é um trabalho individual, até que se descubra o que precisamos colocar nele, qual a espécie de acréscimo e em que quantidade, devemos fazê-lo.
1204
DOIS CÉUS
13/08/20
Há muito tempo, o céu inventou um jeito, de penetrar a terra, sem nem sair do seu lugar.
Desde que tenha uma boa claridade, ele consegue refletir-se sobre as águas límpidas. É possível ver pássaros e peixes, nadando juntos e em harmonia, num bailado muito semelhante, um ao outro, sem se tocarem. As nuvens podem boiar à superfície, sem o perigo de se encharcarem e afundarem.
À noite, o céu invade as mesmas águas, se as estrelas e a lua, conseguem brilhar na escuridão, podem ser vistas, dentro da terra.
Às vezes, o céu chora, quem sabe por quê? Pra ver-se refletido, em imagem trêmula, nas águas mais agitadas? Pra torná-las turvas? Ou pra que ele possa retornar ao seu verdadeiro lugar - acima delas?
1203
JANELAS LIMPAS
10/08/20
Hoje, quando saí à rua, para algumas compras básicas, um velho conhecido me perguntou: "cadê seus óculos?" e eu respondi: "era a máscara ou os óculos, e como ainda não exigem o uso de óculos, tive que escolher a máscara!"
Máscara e óculos, são coisas incompatíveis, todos sabem. Acostumada a andar sempre de óculos, geralmente de lentes escuras, que me protegem do sol, agora estou dando um descanso para eles, andando por aí, sem. Pode parecer estranho, a quem sempre se habituou a me ver escondida atrás deles e está conseguindo enxergar meus olhos, o que antes era impossível. O contrário não se dá comigo, que devido a minha escolha, ando prescindindo dos detalhes que eles me proporcionam, desde que não precise deles, é claro.
Os olhos, têm sido a única parte do rosto, que ainda tem liberdade de ficar exposta. Não são mais possíveis, as famosas 'palavras jogadas ao vento', porque elas ficam mesmo, é presas e amontoadas, na parte interna da máscara, e lá, sem dúvida alguma, não entra nem sai uma gota de vento . Muitas delas - as palavras, se perdem na linha de comunicação.
A eloquência da vez, não é a da voz, é a dos olhos, que devem ser muito mais convincentes, no que precisam expressar, no que precisa ser dito, pois não podem mais contar com a assertividade do discurso. Se antes, o olhar era importante, hoje é tudo o que temos, para nos comunicarmos com o mundo.
Cuidemos bem deles, ou delas - nossas janelas, para que conservem a transparência, por ora exigida!
arte | nina de san
1201
INSPIRAR
08/08/20
Do suave vagar das horas, ao
resplendor das auroras
me tens como refém. Tua
beleza me retém
em infinda
indulgência. Fica clara a eminência
de serena contemplação, de sorver-te por instilação.
Inspiro as tuas beldades, traduzo-as em minhas verdades
nas palavras descompassadas, com rimas engessadas!
Fazes sinfonia de finos acordes, tens
geleiras abrindo fiordes!
Com ouvidos e olhos pequenos, ignoro os segredos terrenos
desde as tuas entranhas, até as mais novas façanhas!
vagar - vaguear, flutuar
indulgência - clemência, misericórdia
eminência - (aqui) importância
instilação - introduzir gota a gota
descompassadas - (aqui) não traduzem
a verdade
engessadas - (aqui) artificiais,
fingidas
fiordes - entrada de mar entre
montanhas rochosas
1200
JOGO E ARTE
08/08/20
Tenho olhos despertos, além do que
eu gostaria de ter. A luz da realidade,
quando os atravessa, fere as minhas retinas, causando-me um olhar seco – secura,
que transfiro ao meu discurso.
Se
a vida não joga dados, também não usa bilros, para fazer desenhos bonitinhos e
perfeitos. Tem dias, em que acho que ela
é um misto dos dois, jogo e arte, mas no restante deles, eu nem sei dizer o que
ela é.
Em
algumas manhãs, tenho a sensação de ter dormido numa cama de palha, rude e mais
curta do que eu, embora nunca tenha dormido numa.
Não
posso responsabilizar-me pela inércia alheia, embora invariavelmente, tenha que
sofrer-lhe as consequências e desdobramentos. Nesses casos, nem jogar, nem bordar, nem
qualquer outra ação, me ocorre executar!
1197
DO ÚLTIMO AO PRIMEIRO
06/08/20
Eu amei demais, muito mais do que a mim mesma - esse, o primeiro erro. Eu me deixei conduzir por caminhos inusitados, que me levaram a lugares pequenos, nos quais eu não cabia. Fui me livrando de alguns pedacinhos, deixados à margem e me afastando, cada vez, para mais longe de mim.
Foi como assistir a um filme, contado em muitos episódios, que em determinado momento, o enredo descamba. Já não me causa a mesma empolgação, sem cumplicidade e conexão com os personagens, dá para perceber, que se desenrola numa nítida intenção, de 'cozinhar' a minha atenção, como expectadora.
É quando a trama perdeu o encanto de uma história verossímil, aos poucos foi diminuindo o meu envolvimento e a minha fidelidade - tornando-se desinteressante.
Passei, a viver para fora, mas agora não há mais - 'fora' ... e 'dentro', já não há vida!
Tristemente, obrigo-me a fazer o caminho de volta, recolhendo meus pedacinhos e quando os tiver - todos, do último perdido, até o primeiro - faço um mosaico com eles ... e só desse jeito, é que saberei, se estou inteira.
arte | agnes cecile
‘Sinto o farfalhar de meu vestido esvoaçante, ao caminhar, afinal é dia de festa! Tomo a direção contrária, do que se esperaria que tomasse - a festa. Ouço o barulho dos meus passos, do salto fino de minhas sandálias, batendo forte no chão, em ritmo tranquilo e decidido.
Parada à porta, percebo o ambiente acolhedor, uma atmosfera aconchegante, de luz indireta e tenho uma calorosa recepção, daquela que se oferece, a quem se espera, há muito.
Ele me toma pelas mãos, dando fim à inércia que me conserva imóvel, levando-me para dentro. Oferece-me uma taça de vinho branco, porque afinal é festa! Conversamos, não com velhos amigos, porque não o somos, mas como conhecidos profundos, porque não chegamos a ser velhos, de fato, pois faz apenas um ano, que nos conhecemos. E além do mais, conhecer alguém, nada tem a ver com o tempo de conhecimento, mas com a sinceridade e coragem nos diálogos.
O tempo passa agradável, sinto-me em segurança e certa, de que é, a companhia ideal, lugar e momento exatos, em que quero estar e ficar.
Dançamos de rosto colado, pele com pele, porque concordamos, que dançar juntinho, uma boa música, é a metade da sedução. Dançar é cortar amarras, é estabelecer vínculos de liberdade e prazer; é sermos um só ser, apreciando e sentindo a música, deixando que ela nos leve ... e ela nos levou, porque quisemos ser levados.
A luz cariciosa sobre os lençóis macios, sobre nossos corpos, a mistura de nossos perfumes, o sabor do vinho na boca, a alegria da entrega e do encontro - estavam imortalizados. Tudo fazia sentido e obedecia a uma sequência de bem estar, dentro da confiança e intimidade consentida.
Tudo foi dando consistência à estória, detalhes, emoções, toques. Foi sendo formatada, por nós dois, ganhando corpo, movimento e vida, criando memórias para ambos, que ficariam para sempre, mesmo que aqueles momentos nunca mais se repetissem.
Perfeito, não no conceito de perfeição total,
inatingível, mas perfeito, na beleza da própria perfeição imperfeita, por
sermos pessoas reais, com todas as possibilidades possíveis ao nosso alcance -
de acordo com as nossas escolhas.’
70
cerca - divisão, proteção, resguardovizinho - adjacente, próximoconvivência - convívio, camaradagem