"Cheguei cedo à praia – antes de mim, só as gaivotas – para o ritual de ler o jornal, dar um mergulho, me secar ao sol e estar pronto, antes das nove, para mais um dia.
Era uma quarta-feira, a luz dos postes ainda acesa, os garis não tinham passado, e, aqui e ali, a areia estava salpicada de copos, cocos, canudos. No mar, não muito longe, flutuava um saco plástico.
Ler o jornal na praia tem a vantagem de não se prestar muita atenção às notícias. Há o vento, a tentação de abandonar o olhar no horizonte, acompanhando uma revoada de pássaros, a sombra de um cardume, um barco, as ondas que se esmeram em nunca ser as mesmas.
O que boiava no mar me interessou mais que as manchetes do dia, não muito diferentes daquelas da véspera. Era um volume arredondado, tinha duas tonalidades, e vinha como que carregado num andor, na procissão das ondas.
Imaginei se não seria um golfinho.
Certamente um golfinho doente, porque vinha sem vontade própria.
A água estava límpida, e lentamente aquilo que flutuava foi ganhando contorno, pernas e braços.
Não era um golfinho nem estava doente.
Estava morto.
Era um homem.
Era um homem.
Liguei para o número de emergência, ainda que não houvesse mais emergência alguma envolvendo o corpo semi-submerso.
Pediram informações que eu não tinha – tudo que sabia era que, a poucos metros de mim, boiava um homem morto.
Pediram informações que eu não tinha – tudo que sabia era que, a poucos metros de mim, boiava um homem morto.
Não demorou muito – ou demorou uma eternidade – apareceu um salva-vidas. Repetiu burocraticamente as perguntas para as quais eu não tinha resposta e entrou no mar. Entrei com ele, menos por vontade de ajudar do que por não saber o que fazer ficando em pé na praia.
- Não pegue nele sem luvas! - pediu, me poupando daquilo que eu não iria mesmo fazer.
Puxou o corpo pelos tornozelos, e a pele deslizou como se fossem meias.
- Deve ter sido no domingo. A correnteza entrega aqui, em quatro dias.
O salva-vidas, que não chegou a tempo de salvar-lhe a vida, arrastou o homem – a cara enfiada na areia - até depois da arrebentação, deixou-o ali de bruços, e foi pedir um carro para a remoção.
Ficamos, eu e o corpo, na praia semideserta.
Devia ser branco, era jovem (tinha os cabelos negros), usava uma sunga preta idêntica à minha e um relógio que, se fosse à prova d’água (o dono não era) ainda funcionaria.
Permanecemos imóveis e silenciosos - como convém a dois desconhecidos que nunca se falaram e não é agora que o iriam fazer - até que começassem a chegar outros madrugadores.
Uns se aproximavam, curiosos; outros fingiam não ver, para não estragar o dia, a corrida, a meditação, o surfe.
Seriam quase nove da manhã quando desisti de velar sozinho o afogado, dobrei a cadeira, recolhi o jornal, os chinelos, e dei as costas ao mar e ao morto.
Não fossem as ondas, quase que dava para ouvir o tique-taque mudo do relógio, marcando o tempo que, para um de nós, não fazia mais sentido.
Agarrado ao seu pulso, como um cão na coleira, o relógio lembraria aos outros banhistas que aquilo era um homem, não um corpo. O relógio lhe garantiria mais algumas horas de humanidade."
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