A LÁPIS E SOMBREADO __ 675
Era uma vez um bule. Ele não era só um bule. Nunca fora usado com tal. Era um enfeite, tinha sido um presente do casamento da vó Maria.
Todas nós, suas três netas, cobiçávamos aquele mimo. Eu tinha feito um desenho dele na escola, na aulas de perspectiva, com todos os detalhes, em lápis preto e sombreado.
O famoso bule era feito de porcelana, de formato quadrado e no feitio de uma casa. A tampa fazia o telhado, com chaminé e tudo, aberta para sair o vapor do líquido. Nunca soubemos se fizera parte de um jogo completo com xícaras e tudo o mais.
Da forma como o fizeram, ele era um convite ao imaginário de qualquer menina.
Vou tentar descrevê-lo: já falei sobre o telhado - onde apareciam as telhas. A alça, numa das laterais, era um tronco de árvore torcido. O bico, um tronco de árvore cortado, do mesmo calibre que a alça, na lateral oposta. Tinha porta da frente larga, com alguns degraus e até porta dos fundos, para uma saída estratégica. Várias janelas, retas em baixo e arredondadas na parte de cima, assim como as portas, sem cantos para que o mal não ficasse preso neles.
Lembro bem, as janelas tinham pequenos losangos, cuidadosamente tratados para parecerem mesmo feitos de vidro, dois detalhes a mais, não se via o interior e havia parapeito florido nelas. Algumas maiores, outras menores, que dariam à casa muita claridade.
Era revestida toda de tijolinhos, isso também dava para perceber. Os requintes não paravam aí, da alça, do bico - quer dizer dos troncos, brotavam pequenas folhas. Algumas trepadeiras em formato de hera, se enroscavam pela alça, do chão ao telhado.
Precisava alguma coisa mais? Não! Ele tinha tudo, para que o imaginário de uma menina, sonhasse em viver numa casa como aquela!
Enfim, como eu era a neta mais velha, ou porque talvez fosse quem mais gostava dele ... ele ficou comigo. Mas como era muito bonito para ser conservado numa caixa, guardado - eu resolvi colocá-lo sobre uma estante vazada que tive, já na minha casa, num lugar privilegiado.
Lá ele ficou, não sei por quanto tempo. Agradava aos meus olhos, e sempre me fazia lembrar dos sonhos que ele me fez ter. Além do que, sem dúvida, era uma peça única.
Um belo dia, eu procurei por ele e não o vi no lugar de sempre. Para minha tristeza, fui encontrá-lo atrás da estante, em pedaços, sem condições de ser restaurado. Tenho dúvidas até hoje, sobre quem o teria destruído daquela forma.
Deu vontade de chorar, vi ali no chão, naquela hora, os cacos dos meus sonhos, que como todos os sonhos, são sonhados na intensidade em que queremos ... e vividos, segundo a realidade nos permite viver.
Essa peça extraordinária existiu de verdade, significou mais do que pude transmitir. Seu fim foi exatamente esse.
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