domingo, 29 de abril de 2018

AS TRÊS CASAS  __ 676




Se despregarmos nossos pés da terra, poderemos facilmente pairar sobre o chão, num exercício tímido de alçar voo em direção ao infinito - um ensaio de liberdade.  Com um desejo sincero de assim o fazermos, acionadas as asas do coração, partiremos rumo ao universo.

Deixando nossos corpos confortáveis, aos poucos, os quintais e telhados reduzem de tamanho, as ruas, o bairro vão revelando para nós, um mapa numa escala cada vez menor.

Deixamos o nosso corpo, enquanto experimentamos a viagem, passo a passo, além da imaginação.

Os rios sinuosos, que determinam alguns  dos limites da cidade ficam claros para nós, desenham a geografia aprendida na escola, agora de uma forma mais didática.  É possível ver o brilho de madrepérola, que a luz solar deixa, quando incide sobre o espelho de suas águas.

Admiramos todos os contornos do relevo e tudo diminui de tamanho.

Começamos a divisar o território do pais de dimensões continentais, como também grande parte do hemisfério sul.

Alguns pontos luminosos surgem, salpicando toda a crosta de luzes, pois já é quase noite.  Em alguns locais, é possível ver que amanhece.

Um pouco mais acima, porque continuamos subindo, atravessamos a atmosfera da terra, com seus gazes, e os contornos já não são tão nítidos.

Quanto mais subimos, mais azul fica o nosso planeta - um incrível azul.

Nos afastamos, um tanto mais, a bola azul diminui de tamanho, já não é tão azul.  Passamos por mais e mais planetas, diversos tamanhos e  aparências, grandes pequenos, acompanhados de satélites naturais ou outros enfeites, conhecidos ou ainda não.

Um pano cravejado de jóias de todos os tipos e valores.  Pequenos mundos suspensos no oceano de silêncio que o céu se transformou.

E passamos por eles,  apenas com nosso olhar de observadores, admirando as obras da criação.

Ainda dentro do nosso sistema, atingimos o sol, e estranhamente nossas asas não derretem, porque são feitas de pensamento, e seguimos em frente.

Avançamos pela via láctea, pelas outras constelações, grandes e pequenos sóis, pendurados no teto do céu, estrelas, cada uma com sua luz e frequência em que pulsam seus brilhos, vistas em tempo real.

Dentre elas, também estamos nós, com a luz que nos acompanha, a luz que aprendemos a brilhar, nos redescobrindo como sendo também, obras do mesmo criador.

Chegamos até aqui, é hora de retornar.  

Aos poucos vamos descendo sem sofrer efeitos de nenhuma lei da natureza, sem usarmos nenhum equipamento especial, da mesma forma como subimos, suavemente.

Deixamos as estrelas piscantes para trás de nós, nossos rostos se iluminam por passarmos perto do sol, mais uma vez, podemos conhecer então, as outras faces dos planetas.

Nos aproximamos mais da terra, que se agiganta diante de nossos olhos e retoma a cor azul. 

Depois que atravessarmos a camada de gazes protetores, podemos ver mais claramente, os seus contornos, do hemisfério sul, do pais, da cidade, não há tantas luzes como antes, porque amanhece.  Em alguns lugares anoitece.  E tudo aumenta de tamanho.

Como se algum véu tivesse sido tirado de nossos olhos, tudo é muito diferente e mais nítido, desde as cores da vegetação, o brilho dos rios, dos telhados, a beleza das pequenas coisas, a perfeição de cada célula de nosso corpo.  Voltamos às nossas casas - a terra, a casa de telhado e a casa de carne e osso.

Aprendemos a voar, fizemos a viagem para fora, agora precisamos aprender a viajar para dentro.  É preciso que encontremos um lugar digno, onde deve ser guardado o precioso brilho que trouxemos conosco.

sábado, 28 de abril de 2018

 A LÁPIS E SOMBREADO  __ 675



Era uma vez um bule.  Ele não era só um bule.  Nunca fora usado com tal.  Era um enfeite, tinha sido um presente do casamento da vó Maria.  

Todas nós, suas três netas, cobiçávamos aquele mimo.  Eu tinha feito um desenho dele na escola, na aulas de perspectiva, com todos os detalhes, em lápis preto e sombreado.  

O famoso bule era feito de porcelana, de formato quadrado e no feitio de uma casa.  A tampa fazia o telhado, com chaminé e tudo, aberta para sair o vapor do líquido.  Nunca soubemos se fizera parte de um jogo completo com xícaras e tudo o mais.

Da forma como o fizeram, ele era um convite ao imaginário de qualquer menina.  

Vou tentar descrevê-lo: já falei sobre o telhado - onde apareciam as telhas.  A alça, numa das laterais, era um tronco de árvore torcido.  O bico, um tronco de árvore cortado, do mesmo calibre que a alça, na lateral oposta.  Tinha porta da frente larga, com alguns degraus e até porta dos fundos, para uma saída estratégica.  Várias janelas, retas em baixo e arredondadas na parte de cima, assim como as portas, sem cantos para que o mal não ficasse preso neles. 

Lembro bem, as janelas tinham pequenos losangos, cuidadosamente tratados para parecerem mesmo feitos de vidro, dois detalhes a mais, não se via o interior e havia parapeito florido nelas.  Algumas maiores, outras menores, que dariam à casa muita claridade.

Era revestida toda de tijolinhos, isso também dava para perceber.  Os requintes não paravam aí, da alça, do bico - quer dizer dos troncos, brotavam pequenas folhas.  Algumas trepadeiras em formato de hera, se enroscavam pela alça, do chão ao telhado.

Precisava alguma coisa mais?  Não!  Ele tinha tudo, para que o imaginário de uma menina, sonhasse em viver numa casa como aquela!

Enfim, como eu era a neta mais velha, ou porque talvez fosse quem mais gostava dele ... ele ficou comigo.  Mas como era muito bonito para ser conservado numa caixa, guardado - eu resolvi colocá-lo sobre uma estante vazada que tive, já na minha casa, num lugar privilegiado.  

Lá ele ficou, não sei por quanto tempo.  Agradava aos meus olhos, e sempre me fazia lembrar dos sonhos que ele me fez ter. Além do que, sem dúvida,  era uma peça única.  

Um belo dia, eu procurei por ele e não o vi no lugar de sempre.  Para minha tristeza, fui encontrá-lo atrás da estante, em pedaços, sem condições de ser restaurado.  Tenho dúvidas até hoje, sobre quem o teria destruído daquela forma.

Deu vontade de chorar, vi ali no chão, naquela hora, os cacos dos meus sonhos, que como todos os sonhos, são sonhados na intensidade em que queremos ... e vividos, segundo a realidade nos permite viver.



Essa peça extraordinária existiu de verdade, significou mais do que pude transmitir. Seu fim foi exatamente esse.

sexta-feira, 27 de abril de 2018


OS DEDOS E A MENSAGEM __ 674 


                                                                          
Não ponha palavras nos meus dedos!
Esse corretor ortográfico, criado para ajudar e que complica a minha vida.  Ele vive colocando 'palavras nos meus dedos', que não traduzem o que quero dizer.  Foi-se o tempo em que se colocava palavras na boca!  

É um não sei que de 'palpite' nas minhas frases, com mais uma razão para que eu tome muito cuidado.
É preciso que eu fique de olho, porque pode me fazer 'falar' coisas que não quero, causando minha exposição ao ridículo.

Felizmente, todos já se deram conta da interferência  desse 'intrometido', então aprendemos a interpretar o sentido de acordo com o conteúdo da mensagem, na medida do possível.

No caso de 'dedo cego': quando troco as letras, é mais fácil adivinhar o correto.
  
Quando a palavra toda é trocada, aí fica por conta da correção posterior, caso a pessoa se dê conta da troca, senão, só Deus sabe como vai ser entendido!


O OLHAR QUE NÃO VÊ __ 673




Os olhos precisam descansar da tarefa estressante e contínua que exercem.  Cada vez mais, recebemos estímulos de todos os tipos, mas os visuais são os que mais poluem e entopem a nossa realidade. É muita coisa para processar. 

Quem não tem um aquário para admirar, nem um horizonte para relaxar a vista, pode aliviar-se de outra maneira, e o nosso organismo providencia isso. 

Eu diria que essas paradas, são semi-conscientes, não é de caso pensado. Eu percebo o desligamento, quando me pego de olhos parados, eu não diria vidrados no sentido de opacos e sem vida, eu prefiro usar um outro termo, talvez estagnados!  No momento, não me ocorre um que seja bom, mas sinto que me desliguei.

Meus olhos, nesses pequenos instantes, obedecem a uma ordem que não ouço, nem sei de onde procede, mas de imediato ... eles ficam sem detectar o mundo exterior, como se necessitassem de um tempo para elaborar o que já tem lá dentro, detrás deles - o que já é muito.

Está aí o termo que procurava: um olhar para dentro!

Os olhos permanecem abertos, e ninguém diria que há algum problema com eles, no entanto nada registram.  Pela frente deles poderia passar um mastodonte sem ser notado, correndo o risco de me ferir mortalmente com seus enormes incisivos e não perceber, caso não desviasse dele. 

Esse olhar contempla, não o que está à frente, mas sim a tela projetada pela mente. 

É um espaço de tempo em que, talvez ocorra um resfriamento, ou uma acomodação, para os olhos e para a mente, que também dá uma pequena pausa, como se ficasse num rápido stand-by.

Passado esse período, as funções são retomadas de onde pararam, quase sempre sem prejuízo.

quarta-feira, 25 de abril de 2018


EU,  UMA ESTRELA __ 672




Deixar me levar pela corrente, quando estou ciente de que é o melhor a se fazer, é sábio.

Quando meus esforços seriam impotentes em relação à força da correnteza, em vez de me debater, não sair do lugar, ou afundar vencida ... escolho ser levada por ela, até um local que dê pé, ou que eu me sinta forte o bastante para voltar a nadar.

Serei uma estrela boiando sobre a água, imóvel, mas em movimento, pensante e voltada para o céu.

DOS DOIS LADOS __ 671



Eu pisava as areias deste lado do oceano.

Andei em direção à praia, mergulhei meus pés na água, eu os vi branqueados, além do normal, as borbulhas da espuma das ondas estouravam em volta deles.

O coração estava doido de vontade de se entregar ao mar profundo e fazer o caminho de volta, para pisar as areias desse lado do oceano.

Sem dar nomes e datas, dos amores lá deixados, eu os abraçaria com tanta força, que entenderiam que a saudade também bateu deste lado. 

Eles saberiam pela minha boca, o quanto foram importantes e que nunca serão esquecidos.  

Muito embora, não tenha sido eu quem os deixou, eram a mim que pesavam como uma ausência melancólica.

Só então compreenderia, o que senti - era uma dor indefinida, sem saber de onde vinha.

terça-feira, 24 de abril de 2018




Olá pessoal! ...
só para constar, chegamos às 61.003 visualizações às 16:47 horas de hoje!  





Grata pela preferência!


'UM OLHAR SOBRE O COMPORTAMENTO HUMANO’

46 – AS RAZÕES DA RAZÃO





A minha parte racional, pode até julgar que todas as minhas necessidades estejam atendidas, num determinado momento. Mas se uma sensação me indicando um vazio, a reclamar um complemento, que eu não sei qual é, e nem onde buscar, está presente – é sinal de que tem coisa errada.

A ideia que me ocorre para explicar é, que eu conheço as variáveis de uma equação, mas a conta não fecha, o resultado não condiz com aquele a que deveria chegar.  Se a conta tem que fechar, devo rever todos os cálculos.


A razão e a emoção são duas partes que brigam o tempo todo. Têm interesses em comum - o bem estar e o equilíbrio da mesma pessoa, mas cada uma usa de sua linguagem particular, desconhecida da outra. Fica difícil um acordo entre elas.

A primeira sempre muito eloquente, tenta convencer a segunda, de que não há razões para descontentamento.  O emocional  ‘estar descontente’ é fato, e como a emoção não é muito boa com as palavras, não pode se expressar corretamente, pois usa de sentimentos e sensações, para os quais a razão é insensível.  Como quiserem, a razão pode enxergar mal, ou ouvir mal, o certo é que ela é imperativa, e no meu caso despótica.

Mesmo que a emoção se descabele, e a emoção grita a insatisfação e tortura a minha estrutura humana, o racional não se abala - a emoção leva a pior.  Eu sei que a insatisfação é real e não inventada, que está incompleta – que deve ser buscada. 

Não estar confortável, para mim é uma constatação de que a razão não tem toda a razão.




segunda-feira, 23 de abril de 2018

TODA MULHER  __ 670


Toda mulher é em si, uma rainha. E como toda rainha tem que morar em algum lugar ... nada melhor do que um castelo, onde possa guardar as suas riquezas.  

E cuidado para com o seu castelo, não importa se for uma casa simples, mas deve ser o território onde ela se sinta soberana.  

Não é preciso um trono para se assentar nele, é preciso que em qualquer lugar que ela esteja, se sinta querida e respeitada.

Não é necessário um cetro, para sinalizar sua importância.  A devoção dos que vivem em seu reino, isso sim, será a coroa perfeita a enfeitar-lhe a cabeça e o peito - e pela qual será capaz de servir, fiel e prazerosamente,  ao menor dos seus súditos.

domingo, 22 de abril de 2018

"CONOSCO NINGUÉM PODOSCO" __ 669




Ele mesmo os faz, julga e aplica.  Acumula funções de poderes que outorgou a si mesmo!  Tem a caneta, o martelo e a forca, porque o chicote não é o bastante.  Poderes? ... de seus propriamente ditos? ... nenhum!  Mas, porque assim precisa que seja,  considerar-se o supra-sumo - para  'poder tudo', auto-denominar-se 'a referência' e ser o senhor absoluto.

Legisla sempre a seu favor é claro, usa a mesma balança, com um prato viciado ... e antes de fazer cumprir a sentença de morte ao outro, aplica-lhe a tortura, com prazer.  Não há réu que saia ileso dessa raiva, porque ninguém detém a razão, senão ele.  É o famoso: 'conosco ninguém podosco'.  A pessoa que acredita que as consciências podem ser compradas, em algum momento da negociação.

É assim que vive, de inventar decretos-leis, e fazer com que sejam cumpridos, os decretos e a sua vontade,  a ferro e fogo, até que o devedor pague o último ceitil, de uma dívida hipotética mas justíssima! ... de acordo com a sua peculiar e tendenciosa justiça!

Aprisionado entre dois totens, rígidos e inabaláveis, adorando a um, renegando e abominando o outro, representantes das  polaridades: sim, não, certo, errado, bonito, feio ... entre outros.

Arrota capacidade, autoridade e idoneidade que não tem, para determinar qual é qual, depois segue em frente sem se dar conta de suas perdas, tendo a plena certeza de que ganha todas. 

Usa como critério seus parcos conhecimentos e convicções pessoais, arcaicas e cristalizadas.

É incapaz de arriscar um voo rasante sequer, sobre seus instintos mais elementares, que o prendem ao chão.  Como também é incapaz de supor, que entre os dois totens, existam inúmeras e viáveis combinações de possibilidades de vida, sucesso e felicidade, que devem ser respeitadas.

Nem cogita, de que o seu modo de vida e visão, têm o mesmo merecimento ao sol que os demais, que devem ficar no mesmo patamar de direitos, e o principal: que para esses quesitos não há juízes, nem certos, nem errados.

sábado, 21 de abril de 2018

           
O QUINTAL E O POSSANTE __ 668 




O quintal de nossa infância acaba por se tornar pequeno, à medida que crescemos.  

A praça, que para nós era o mundo, com esconderijos e espaço para fugir do pega-pega, ou andar de bicicleta por exemplo, se transforma num pedaço circular, ou retangular de terra, incapaz de conter nossas curiosidades. 

Ela retoma seu formato físico, e a mágica que a encobria, deixa de existir, depois que desvendamos todos os seus mistérios.

Da minha infância, eu me lembro de muitas coisas.  A ideia que tinha dela, não era de pobreza, mas de algumas necessidades não atendidas, era isso que eu via. Tudo foi de muita simplicidade, porém o básico foi atendido.

A alimentação foi com verduras e frutas, leite, café, pão e manteiga, arroz e feijão, carne nem sempre ... mas quando tinha, era partilhada igualmente, aliás, como tudo o mais.

As roupas, eram passadas dos mais velhos aos mais novos, eu como mais velha, adorava quando uma prima de minha mãe já mulher feita e ganhando o seu dinheiro, se cansava de algumas peças do seu guarda-roupa e as dava para mim.  Assim eu tinha a chance de usar roupas mais femininas, mesmo sendo ainda uma adolescente, fato que naquela época, era normal, menina não usava roupa de mulher, nem se pintava, só no carnaval.

Na escola pública, usávamos uniforme, nunca nos faltou livros ou cadernos, nem material para trabalhos, o tempo para as tarefas era sagrado. O lanche era de casa, raramente comprado na cantina.

As brincadeiras eram muito legais, gostava de brincar de casinha, e brinquei muito. Não era muito boa com jogos do tipo queima, ou vôlei, me lembro que uma vez entortei meu dedo jogando na escola, ficou muito inchado, chorei de dor.

As doenças eram tratadas com chás e sucos naturais, lembro-me de que antes dos meus sete anos tive hepatite.  Fui curada apenas com repouso e um suco de salsa que minha avó fazia no seu possante liquidificador.  Digo possante, porque era barulhento como o motor de um carro ligado, mas suas pás não liquefaziam completamente os alimentos, então eu tomava aquele suco, com pedaços grandes de salsa nele, era horrível, mas funcionou.  

Lembro-me também da vitamina, feita com leite e mentruz, batida no mesmo possante.

Eu cresci no quintal de meus avós maternos.  Lembro também com muita saudade, de desenhos que eu assistia junto com meu avô, em que as figuras eram muito delicadas, em silhuetas preenchidas de preto, sobre o fundo branco.  Aquilo me encantava, tal era a sutileza de suas formas. 

Nunca mais pude revê-los, acredito que esse acervo tenha se perdido, em alguns incêndios ocorridos nas emissoras de tv que os transmitiam.

Hoje, nenhum desenho atual, é capaz de provocar em mim o mesmo efeito.

Não conheço ninguém que se lembre deles, mas posso garantir que são reais, que marcaram delicadamente minha infância, além do 'gasparzinho' de que também gostava de assistir.  


Tenho total certeza, de que fui uma criança feliz, de que minha meninice não poderia ter sido mais rica do que foi.

Apesar do que faltou - que sempre falta algo - eu saí a procura do que queria.

Ao exemplo dos mais velhos, da comida compartilhada, das roupas aproveitadas, da atenção recebida, do amor disfarçado de cuidados, eu cresci feliz e plena, achando que faltava algo, quando na verdade eu tinha tudo, tudo de que precisava.


sexta-feira, 20 de abril de 2018

ASSIM E SÓ ASSIM __ 667 

                               


O caminho de ida tinha sido largo e ensolarado.  No começo, eu sentia um tapete vermelho estendido sob os pés, uma trilha sonora ao fundo, flores colocadas nas calçadas.  

Eu tinha convicção de que fazia diferente, de tudo o que já tinha sido feito antes.

Aos poucos, a textura do tapete foi se gastando pelo uso.  Foram se tornando: a música distante e a atmosfera escura.  Até que não restasse nada além da sensação de ter pés descalços sobre um chão rústico e frio, de estar imersa no silêncio dos meus pensamentos e de caminhar só, num meio escuro.

Eu pedi, insisti, reclamei, gritei pelo conforto de antes, mas não consegui voltar à antiga situação.  As manhãs ficaram sem graça e sem por quê, os dias mais longos, as noites - antes tidas como para sonhar, se tornaram local de exílio à minha tristeza, uma companheira constante.

Eu não era mais eu.  Era algo que tinha ficado aos pedaços, pelas avenidas principais do caminho de ida.  Quem eu era, sabia, tinha ficado em alguns pontos dele, partes importantes que precisavam ser recuperadas, para que eu pudesse voltar a ser eu.

É! ... mas a volta não foi igual a ida, voltar é diferente de ir, cadê as avenidas?  O que permaneceu intacto, foram as ruas comuns, as passagens estreitas, tortuosas, sujas e mal frequentadas.  Elas tinham estado lá o tempo todo, eu só não havia transitado por elas antes, apenas fizeram parte da minha visão periférica, sem que eu me aventurasse entrar.


Para meu espanto, foi nesses locais que encontrei os meus pedaços perdidos, nessas vielas, longe das avenidas largas e ensolaradas.

Todos queremos transitar por grandes avenidas, que a vida nos seja doce e alegre, com a leveza do pisar, do ouvir e do olhar, para que possamos senti-la de uma maneira agradável.  Mas sempre há passagens estreitas, pelas quais devemos ter a coragem de nos perdermos.  Assim e só assim, reencontrarmos os cacos que nos pertencem, que nos remendam, que nos reformam e nos remodelam em pessoas inteiras.

quarta-feira, 18 de abril de 2018


  TUDO E TODOS                                                                        666




arte: jamie heiden


Via-se o morro ao fundo.  A rua terminava bem de cara com ele, um paredão natural.  Era uma das divisas da cidade, que por sua vez cresceu entre acidentes geográficos.

Numa formação estranha, só explicada pelo estudo da geologia, o morro era um muro no fundo do quintal da cidade, de difícil transposição, que quase a circundava por completo, exceto pelo lado oeste, onde um rio que cortava a região, lhe servia de divisor. O paredão fora colocado como uma semi coroa em volta da cidade ou como uma fortaleza. Tudo e todos ficavam restritos a esse espaço.  Apenas as cabras se aventuravam a subir pelas encostas íngremes do paredão.

Por essa razão, ela não podia ser considerada cravada dentro de um vale.

A cidade tinha sido plantada pelo rio, a única divisa que permitia acesso à região. Por ele, saia e entrava quem quisesse.

terça-feira, 17 de abril de 2018


A IMAGEM VERDADEIRA                                                                665




Na poça de água suja, eu vi o reflexo do edifício, que me pareceu sujo também.

Cada vez que o vento agitava a água estagnada, a imagem do prédio tremulava feito uma bandeira e o tornava instável.

O movimento não permitia que a sujeira descesse ao fundo, como eu queria vê-la, decantada em algum momento.

Ergui os meus olhos e não vi o que supus pela minha visão indireta - o prédio estava recém pintado e de aspecto muito bom, apresentando-se firme e estável.

A poça de água tinha sido uma espécie de lente, através da qual me servi para ver o prédio, por reflexo, mas que distorcendo a imagem verdadeira, me enganou.

Foi só preciso que eu levantasse meus olhos, para poder enxergar com clareza, a realidade à minha frente.

Para apreciar a imagem verdadeira é preciso ter a coragem de um olhar direto, sem desvio ou subterfúgio.

Às vezes, é imprescindível, colocar nossos óculos mais na ponta do nariz e olhar por sobre as lentes, porque estas corrigem deficiências físicas dos olhos, mas não corrigem a deficiência da alma.

É preciso enxergar através 'dela', com os olhos 'dela.

domingo, 15 de abril de 2018



NO REINO ESCONDIDO                                                                 664




O que seria das florestas encantadas, sem seus monstros, para afastar os intrusos?

Ninguém teria medo de atravessá-las, e em pouco tempo, de tanto movimento de gente a se aventurar por elas, comendo seus frutos, caçando ou domesticando seus animais, cortando as árvores para abrir caminhos, deixariam de ser sombrios alguns  de seus trechos e passariam a ser iluminados e de passagem segura.

Os seres que lá habitam, seriam desalojados, junto com eles, desapareceria a imaginação do fantasioso.

É preciso que elas assim permaneçam, do jeito que são, para que não se tornem desencantadas.

COTOVELOS DE JULIETA                                                           663




Cotovelos sensíveis? Eles doem por quê?  
Quando nos apoiamos sobre eles, apreciando a vida do outro, de uma forma observadora de suas conquistas, sem considerarmos quantos e quais foram os seus esforços.  Esse olhar é pesado, sobre o outro e sobre nós mesmos, e pesa tanto, que os nossos cotovelos no parapeito da janela sentem esse peso e começam a doer, incomodar.

Um olhar estático e passivo, de cobiça até - sem reconhecimento do valor do outro e do nosso próprio e real valor, engessa nossa postura, na figura daquela moça feita de cerâmica, namoradeira,  debruçada na sacada ou no janela, que vemos em muitas casas. 



SAIBAS TU                                                                                                  662





O elogio justo, se não o fizeres
outro fará, ao certo.
À atenção negada
ao tempo de que não podes dispor,
alguém preencherá.  
Em breve, 
nada mais te pedirá, 
uma palavra, opinião.
Guardará para si, as suas coisas.
Perdido estará o espaço que era teu.


UM SOM FAMILIAR                                                                                             661





Eu tinha me esquecido do significado daquele som.  Em outros tempos, era só ouvi-lo uma vez, para saber o que acontecia.

Mas naquela manhãzinha de domingo, precisei ouvir algumas vezes, o mesmo barulho e a sua cadência.

Só então me lembrei do que queria dizer.  Que chovia, mas não uma chuva muito forte, e sim uma garoa um pouco mais grossa, que fazia com que, pingo a pingo, a água escorresse do telhado em algum ponto e provocasse um som intermitente, numa  telha de amianto talvez, ou num pedaço de metal, não sei.  'Pin ... pin ... pin ...'

Eram pingos caindo num ritmo certo sobre uma superfície anunciando algo, antes que eu saísse da cama. Eram música para meus ouvidos, numa percussão rudimentar, porém muito agradável.

Achando que era mais cedo do que realmente era, eu abri a janela e vi, tinha chovido e devia continuar a chover pelo resto do dia. Parece, que a meteorologia tinha acertado quanto à mudança do tempo.

sexta-feira, 13 de abril de 2018


CASAS E CASAS                                                                                             660








É estupidez, ignorar que uma casa precise de reparos, de vez em quando.  E que os danos não serão menores, no decorrer do tempo.  

É irresponsabilidade desleixar-se de um relacionamento, de que ele precisa, de um perdão, um colo, uma conversa franca e misericórdia periódicos, sem contar o respeito, necessário sempre.

Porque, sem manutenção, um dia a casa cai, desaba.  E do relacionamento, não sobra nem uma coluna de sustentação, se não for cuidado.  Tanto a casa, como o relacionamento, sinalizam a necessidade de reparos ou modificações.

A descoberta de cupins no armário da cozinha, um choro abafado no travesseiro, são coisas a serem reparadas com urgência.

Uma casa se faz de três coisas: chão, paredes e telhado.  O primeiro serve de base e deve ser firme, para que se possa erguer as paredes sobre ele, e estas devem ser boas, para que sustentem o telhado.  A finalidade dessa construção é dar proteção nas intempéries, de uma maneira que os habitantes sintam-se a salvo e confortáveis, nela.

Um lar, também deve ser feito de três coisas: base, sustentação e proteção.  Deve permitir não só a sobrevivência, mas proporcionar um local de refazimento e de construção para novos ideais.

O amor próprio tem seu próprio teto, mas os amores a dois, a três, ou mais, têm que partilhar um espaço comum, com regras claras que definam o respeito à convivência.  Isso também vale para as amizades.