domingo, 17 de outubro de 2021

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FURTA-COR




Traz à cabeça um chapéu branco, próprio para os dias de sol.  Uma faixa de renda, quase azulada, separa e coroa a junção, entre a grande aba transparente e o topo. Do lado esquerdo, espetado, vê-se o alfinete, que com uma pérola em sua ponta visível, consegue mantê-lo preso à cabeça, de maneira firme, atravessando-lhe os cabelos recolhidos debaixo dele.  Presume-se um penteado gracioso, na nuca pende um cacho mais teimoso e uma pequena mecha escapa-lhe à fronte, incomodando sua visão.  Não há como retirá-la, pois leva em uma das mãos, uma maleta dessas de tecido grosso e trama colorida; na outra carrega uma passagem de primeira classe. Seus delicados brincos, dois camaleões, duas pedras roliças, furtam as cores do ambiente, conforme a luz que se projeta sobre elas. Suas luvas são do mesmo tom de azul da faixa de renda do chapéu.    

Como sempre, vestira-se de azul, num tom mais escuro do que as luvas. São duas peças, uma saia e um tipo de casaquinho de mangas longas, do mesmo tecido, separados por um cinto bem discreto, apenas para marcar-lhe a cintura.  A gola engomada da camisa branca, sobe endurecida e esconde parte de seu pescoço, circundando-o e terminando em vê, no decote simples. O farfalhar da saia, atrapalha seus movimentos inquietos, mas nesse tempo, ninguém se dá conta disso, ninguém contesta o costume; pois calças são apenas para os homens e as mulheres aceitam essa limitação, com graça e resignação.

No ar, vapores de combustível fóssil, queimado pela locomotiva fumadora e faminta, que fungados para fora, através de narina enorme, formando uma nuvem constante e tornando bem desagradável, a atmosfera, já pesada de impaciência e expectativa.

A viagem será solitária, e é essa a razão de tanta atenção de sua parte, a partida será em breve, já  anunciada pelo primeiro apito do trem.

O destino é certo, porém a sua vontade não. Talvez devesse mesmo partir, novos caminhos a levariam a lugares diferentes e a diferentes experiências.   Sentia que partir era a forma mais fácil de escapar do que lhe parecia irresolvível.  De uma outra forma, sabia também, que sair de cena não lhe deixaria confortável, seria como se, no final das contas, lhe tivesse faltado coragem, para amarrar as pontas ainda soltas.  

Pousando a maleta no chão e antes que soasse o último apito; as mãos com luvas azuis rasgaram a passagem de primeira classe, de maneira bem determinada.  E seus olhos de cor indefinida, viram os pedaços de papel pardo se perderem ao vento.  Olhos que são azuis, quando olha para o céu ou em contato com as águas; verdes, quando está sob as árvores; adquirirem a cor do mel, ao fitarem o objeto de seu desejo; naquele momento eram cinzentos, porque se apossavam da cor do ambiente, em que ela se encontrava.


furta-cor - termo erroneamente conhecido como 'fruta-cor' - capacidade do objeto em assumir a cor do que está ao seu redor ou de como a luz se reflete sobre ele.

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