domingo, 18 de abril de 2021

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TEMPOS E CANTOS




Eu venho de longe, do fundo dos tempos. Passei por vários climas, coordenadas e relevos; debaixo e acima da terra, fora e dentro das águas.  Vejo campos verdes de abundância, enquanto corpos secos, com estômagos grudados de fome, vagam por terrenos ásperos, não muito longe.

Estive em lugares em que a poeira seca é arrancada do chão, pelo tropel de cavalos. Vi estalactites de gelo, penduradas à entrada das grutas, como grande cortina ou escorrendo dos telhados das casas, como franjas de um tapete gelado; apenas aguardando por temperaturas mais altas, para se desmancharem em bênçãos sobre o solo, desencavando a vida adormecida, fazendo-a explodir em cores e alegria.  Chorei pelas espécies extintas e que ficarão desconhecidas para sempre, pela história ainda enterrada.

Senti o aroma das bebidas quentes e o cheiro sufocante de carne humana, sendo queimada nas fogueiras da incompreensão.  Das chaminés, constatei saírem gazes mortíferos, no extermínio de milhões de individualidades, para depois serem enterradas em cova coletiva e comum - assisti e assisto ao homem agindo como ceifador de sua própria espécie, além de outras tantas.

Também presencio as chamas da ciência nas experiências em prol da vida, as orações subindo aos céus.  Vejo a ganância e a vaidade em ação, defendendo seus impérios com garras ferrenhas; mas também estive e estou presente quando a misericórdia espalha unguentos sobre as feridas, a solidariedade molha lábios ressecados e dá de comer à boca doente.  Vi e vejo as rosas que se transformam em pão e plantam a esperança no coração dos necessitados.  Testemunho o peso das consciências, ao serem consumidas em seus infernos pessoais e certifico o repouso tranquilo de outras, no travesseiro mais macio que existe - o da leveza no trabalho honesto e no dever cumprido.

Vi de tudo, em todas as épocas, em todos os cantos; vi corpos apodrecendo nas trincheiras, como vejo  as sementes germinarem na terra, os novos alimentos.  Vejo úteros, preparando outras pessoas - atesto o d.n.a. humano, se aperfeiçoando a cada geração e o espírito do homem sendo refinado, incessantemente.

Apesar de ter visto tudo - da morte ao renascimento e à morte - do mais bizarro ao mais terno; não perdi a minha capacidade, de em cada manhã, encantar-me com a criança embalada ao colo, ressonando inocentemente ... ou de enternecer-me com o diminuto inseto, que executa lindamente seu propósito de vida, porque sabe que seu futuro é de evolução, como o destino de todos os seres.

18/04/21





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