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TODAS AS CARAS
Por mais que eu a conheça, sempre me surpreendo com ela. Após décadas de estreita convivência, ela
ainda é capaz de mostrar uma nova e desconhecida faceta, quando menos espero
e quero. Sem dúvida, é de muitas caras,
mais instável do que todas as mulheres sob o efeito das quatro fases da lua.
Sinto como se ela, durante todo o tempo, alimentasse uma propaganda enganosa a seu respeito.
Quando julgo estar mirando a verdade, insiste em desatrelar uma ou outra
máscara, e quantas tem! Como se aos
poucos, fosse retirando a maquiagem, os acessórios que disfarçam suas
imperfeições, sua bela roupa; mostrando-se como é, e revelando-se aquilo, que eu
não imaginava que fosse.
É com assombro, que muitas vezes, me deparo frente à sua crueza e secura, se mostrando nem um pouco misericordiosa, para com os meus sentimentos, apresentando-me fatos prontos, não opcionais e totalmente avessos à minha intenção. Com sua postura impositiva, me obriga trilhar caminhos nunca esperados, apesar dos meus esforços em contrário. Desconsidera meus planos e vontades, me arrasta por consequências danosas – as mesmas das quais, tanto desejei evitar. E ao conquistar uma certa maturidade (tanto quanto me é permitido ter), encontro uma utilidade para ela – de lançar luz sobre os fatos do passado!
Ela é mestra em me fazer inadequado, oferece oportunidades tardias, que teriam sido muito bem vindas em outras épocas. Apresenta novos amores, como flores de outono, quando não há tempo ou coragem para vivê-los. Convida a dançar, quando não tenho pernas; dá nozes, quando já não tenho dentes.
Mesmo já tão calejado, sucumbo ao seu encantamento, para
depois acordar subjugado por ela. Por
vezes, parece que usa de hipnose, para atingir seu intento, e acho que é de
caso pensado que o faz, me leva ao engano e só então, profere a sua sentença: “É
assim que vai ser!”
Eu não terei conhecido todas as suas caras, até que ela,
totalmente nua, venha se deitar comigo em minha cama, pela última vez. Até no meu último suspiro, ainda terá algo a
me ensinar!