domingo, 29 de junho de 2025

1705





HIPÓTESE E TESE


Perdido entre os pensamentos, que me fazem ‘sentir’ sentimentos correspondentes ao que penso.  Sentindo, o que me faz pensar pensamentos equivalentes ao meu ‘sentir’, proporcionais em peso, volume e intensidade. Nesse círculo vicioso, onde percorro a linha curva, que retorna ao ponto de início, corro atrás do meu próprio rabo, e invariavelmente, quando o alcanço, volto a mordê-lo.  


O que deveria ser apenas um ciclo, do qual eu me libertaria naturalmente, torna-se armadilha, que me mantém subjugado às condições insalubres, de repetição de ideias e re_sentimentos.  


A inteligência, a percepção e a intuição, sempre atuam a nosso favor.  Elas nos fazem observar, analisar as situações e formar opinião, mas como nos falta confiança no nosso ‘taco’, e por medo de aceitar o que apesar de muito claro, é também doloroso; preferimos o ‘benefício da dúvida’.  Elaboramos hipóteses, que enquanto apenas hipotéticas, quase não machucam, ferem superficialmente.  Quando são constatadamente observadas, e se tornam tese, são devastadoras, cortam profundamente, revirando a lâmina dentro da carne.


Somos obrigados a velar, para depois enterrar uma expectativa, a respeito de algo ou alguém.  Aos poucos, vamos tendo que dizer adeus a tudo que virou tese, a aceitar à realidade, que já havia sido visualizada por nós.  Entramos no processo de luto, onde enterramos muito mais do que nossas expectativas, enterramos pessoas, sonhos; enterramos um pouco de nós mesmos. Só o quê não conseguimos enterrar: as nossas memórias, os nossos sentimentos; mas eu acredito que talvez, tudo seja uma questão de tempo.  


Transformar um círculo em ciclo, requer de nós sustentação, para atravessarmos o período de luto; coragem de darmos não um passo, mas um impulso, em direção a outro ciclo, novo, mais elevado, consciente, maduro.  Mesmo que não sintamos o chão, mesmo que seja dado no escuro - o que nos move é a necessidade de fecharmos um círculo de sofrimento.




quinta-feira, 26 de junho de 2025

1704




ENTRE O CORPO E O SILÊNCIO 

Eu sussurro, como num pacto que não devo quebrar.  

Aceito e acolho o que chegou até minhas mãos, porque me fez ser quem eu sou. 

Entrego, o que ainda não 'pôde' ser. Aprendi que a transformação só acontece fora da vigilância, sem armadura e no recolhimento.  É quando, solto a rédea da pretensa e ilusória tentativa de controle.

Confio, que o que veio, tinha endereço certo.  Reconheço que minha mente tem medo, mas a minha alma conhece a confiança e outras tantas virtudes. O sofrimento é abandono interior e a mente precisa escutar o que a alma diz, porque ela fala - ah! e como fala! Para ouvi-la, devo calar os pensamentos, pois fazem muito barulho, só assim o diálogo pode acontecer.

Agradeço ao universo, pelas inúmeras dádivas, pois agora ele me escuta, depois de me despojar da falta, da queixa, do descontentamento.  Só a gratidão é capaz de converter a 'falta' em presença, em algo muito mais valioso - como um bálsamo que cuida do que estava partido, transmuta e remodela a minha realidade, numa versão mais favorável a mim mesmo.


arte __ agnes cecile

quarta-feira, 11 de junho de 2025

1703




UM DENOMINADOR COMUM


Até o mais ferrenho crente no diálogo, aquele que acredita no poder das palavras, de esclarecer e encurtar distâncias - até mesmo ele, será obrigado a admitir, em algum momento, a inutilidade delas.


Não que ele desacredite ou duvide do significado de cada uma, mas ele sabe, que para haver comunicação é primordial que as partes a desejem.


Não há denominador comum ou acordo ou entendimento, a que se possa chegar, quando há a negação da existência de desencontro, ainda quando a questão já se encontra cristalizada de um dos lados.


Frustrado, em primeiro lugar consigo mesmo, mas depois percebe que não é falha sua, e que por mais eloquente que seja, é impossível tocar, nem que seja de leve, quem não deseja ser tocado.  Alguém que nunca baixa a guarda, rechaça qualquer tentativa de aproximação, mantém-se categórica e hermeticamente fechado em sua razão.  Talvez tema, que uma vez aberta, nunca mais a consiga fechar.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

1135

CANTAR E CONTAR
26/02/20


Amélia morreu de inanição, depois de consumir-se a si própria,
numa autofagia. Enrolada e acocorada, foi-se, mortificando sua carne, a um canto, sem um pio, sem comida, sem agasalho,
sem teto, sem reclamar, roxa e ressequida.
Se achava graça de sua desgraça, não se sabe,
talvez tenha sido puro sadismo, de quem dava voz à melodia,
por sinal, uma voz bem desumana!
Mas acho que foi mesmo desamor,
dela, para com ela mesma, sem nada exigir,
ou levantar-se para seguir adiante ...
antes mesmo de ser um descaso,
da parte de quem dizia, que a amava.
Não, não a amava! A odiava!
Se amasse, a respeitaria como ser vivente,
como ser livre, que escolhe ficar, podendo ir.
Ela não seria retratada como uma prestadora de serviços,
cúmplice da preguiça de quem a descreve, dentro de uma inércia de causar nojo.
Ele lhe traria os melhores quitutes, flores,
lhe daria as mais lindas vestes, uma casa aconchegante,
faria dela uma mulher de verdade, mesmo(!)
e não um espectro com alguma serventia.
Que bom que ela tenha morrido, pois não era de verdade,
nem sequer era mulher, sua vida foi uma apologia aos maus tratos.
Quem a cantou, deveria se envergonhar, de não ter pensado
numa letra mais adequada ao romance que tentou contar,
se é que foi mesmo essa, a sua intenção!
arte | agnes cecile

1702





HIATO 2

Desgosto sobre desgosto - des_gosta; escuridão atrás de escuridão - des_lustra.  Inútil foi tentar reaver o brilho, muito menos soprar o fogo que mantinha o sentimento aceso.  Passou um vento forte, ao qual nenhuma chama resistiria acesa.

Criou-se um hiato, que não se detecta em nenhuma parte do corpo. Abriu-se um buraco, uma fenda na alma, por onde já escorreu toda a boa intenção, todo o tempo de espera, toda a graça e não há nenhuma ponte capaz de transpor essa distância - essa boca que a tudo engole.